Na edição mais recente da lista de melhores filmes de sempre que a revista Sight and Sound organizou, Jeanne
Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman
(disponível no Filmin), ficou em primeiro lugar. Dando uma vista de olhos a
esta nova lista, ainda sem a ter analisado a fundo, o Cinéfilo Preguiçoso fica
com a sensação de que lhe falta alguma perspectiva histórica, na medida em que
inclui títulos recentes que não temos a certeza se serão recordados no futuro (muitos
dos quais realizados por homens) e ignora ou empurra para lugares secundários
obras de realizadores há muito tempo importantíssimos para os cinéfilos em
geral. Enquanto listas anteriores padeciam de uma reverência excessiva pelo
cânone, destacando insistentemente filmes como Citizen Kane (1941) ou O
Couraçado Potemkine (1925), esta privilegia a contemporaneidade e a
diversidade. Numa lista em que receamos ver aparecer a qualquer momento um título
ou outro da série Avatar, surpreende o facto de um filme tão «difícil»
como o de Akerman ter ficado em primeiro lugar. Não vale a pena estarmos com
paninhos quentes: Jeanne Dielman é um filme difícil de ver. Dura mais de
três horas, tem poucos diálogos e documenta repetitivamente as rotinas de uma
protagonista inexpressiva, com uma vida em que pouco acontece: a personagem
principal dedica-se a actividades domésticas e prepara refeições enquanto ganha
o seu sustento e o do seu filho recebendo homens que lhe pagam por sexo (atrás
de portas fechadas). Já alguém disse que neste filme reina o «suspense do
quotidiano»: de facto, continuamos a vê-lo na expectativa de perceber até que
ponto a realizadora consegue aguentar a ausência de acontecimentos. É irónico
que Jeanne Dielman tenha ultrapassado, no primeiro lugar da anterior
versão desta mesma lista, um realizador que costuma ser descrito como «mestre
de suspense». A questão é que continuamos a ver os filmes de Hitchcock não só para
sabermos o que vai acontecer a seguir nas histórias que contam, mas sim tanto
por motivos formais e visuais, como pela capacidade que têm de evocar questões
que não estão imediatamente presentes na narrativa e nas imagens. E vemo-los (assim
como aos filmes de outros realizadores que antes ocuparam os lugares cimeiros
desta lista) com deslumbramento, esquecendo-nos de tudo o resto. O mesmo não
acontece quando assistimos a Jeanne Dielman, que é um filme que só a
posteriori se torna interessante, depois de um fim inesperado, quando
começamos a pensar em todas as suas implicações e problemas. Tem sido descrito
como «filme feminista», mas mesmo este rótulo parece simplificá-lo e
empobrecê-lo. Jeanne não é bem uma simples «vítima do patriarcado»; dir-se-ia
que escolheu aquela forma de vida e que está contente com ela, já que, até
certo ponto, nada faz para a modificar. O que sabemos da sua história e dos
seus antecedentes é demasiado escasso para permitir leituras sociológicas. Sem
dúvida, o facto de este filme ocupar o primeiro lugar de uma lista em que antes
se destacaram títulos tão diferentes traduz a tendência actual de valorização
de critérios não estritamente estéticos na apreciação das obras de arte. O
problema é que, enquanto os critérios estéticos nunca estão totalmente
separados de outras considerações, os critérios não estéticos tendem a menorizar
a vertente estética, acabando por privilegiar escolhas menos complexas e menos
ricas. Não falta complexidade a este filme de Akerman, mas convém continuarmos
a discuti-lo para percebermos se esta é inequivocamente cinematográfica e se os
motivos não cinematográficos que o projectaram para a posição que ocupa nesta
lista ampliam, interpretam mal ou prejudicam o seu valor cinematográfico. Será
interessante não só conferirmos o lugar que ocupará nesta lista daqui a dez
anos, mas também avaliarmos como esta distinção afectará a apreciação, no seu
todo, da obra de Akerman, da qual constam filmes que, de um ponto de vista
estético e artístico, estão mais alinhados com os critérios de valorização que
a crítica privilegiou durante décadas, como, por exemplo, o extraordinário La
Captive (2000). E esperemos também que daqui a dez anos haja mais mulheres a
realizarem filmes, se quiserem – uma das melhores maneiras de combater a
desigualdade é através da igualdade de oportunidades, que hoje ainda não existe.