Visto na Cinemateca, Cria Corvos (Carlos Saura, 1976) acompanha a história de Ana – interpretada pela extraordinária Ana Torrent, pouco depois de ter sido a protagonista de O Espírito da Colmeia (Victor Erice, 1973) –, uma menina de oito anos que perdeu recentemente a mãe e o pai. Ana vive no centro de Madrid, com as duas irmãs, uma tia, uma empregada e uma avó já muito debilitada, numa casa grande com uma piscina vazia e um jardim descuidado e cercado de muros altos. Desde a primeira cena, ainda sem compreendermos plenamente o que se passa, seguimos o ponto de vista da protagonista, que, na penumbra da casa misteriosa, assiste ao longe à morte do pai, numa situação duvidosa. Depois, friamente, despeja no lava-louça um copo de leite hitchcockiano e lava-o. Assim é que se começa um filme! Reina nesta casa uma atmosfera de isolamento, em que se confundem pesadelos, fantasias, recordações, acções, incompreensões e fantasmas típicos do imaginário infantil. (Quem conhece o livro We Have Always Lived in the Castle, de Shirley Jackson, vai encontrar neste filme alguns pontos em comum, entre os quais a função ambígua do veneno.) Nem sempre os espectadores percebem imediatamente a que categoria devem associar a cena a que assistem, e gera alguma perplexidade o facto de Geraldine Chaplin (companheira do realizador na altura, e também financiadora dos seus projectos e uma das responsáveis pela sua promoção internacional) assumir tanto o papel de mãe como o de Ana já adulta, mas o filme é tão equilibrado que nunca se torna confuso. Tanto enquanto criança como enquanto adulta, Ana, testando constantemente as fronteiras entre vida e morte, tenta processar, por um lado, a ausência da mãe e o seu sofrimento em vida, e, por outro, a violência, o machismo, o carácter traiçoeiro e a agressividade militar do pai (associados ao regime franquista e a Franco, que morreu em 1975). As cenas que partilha com a mãe ou com o seu fantasma têm uma intensidade que recorda vivamente alguns momentos de filmes de Ingmar Bergman, como Lágrimas e Suspiros (1972) ou Persona (1966). Entre outros rituais de Ana, como a expressão («Quero que morras»), ou a sua tendência para aparecer em lugares em que lhe perguntam «O que estás a fazer aqui?», a repetição no gira-discos da canção Porque te vas, de Jeanette, e a recordação de uma composição de Federico Mompou que a mãe costumava tocar no piano parecem ter a função de a tranquilizar e, de certo modo, traduzem o ritmo repetitivo da memória, que revisita incansavelmente os acontecimentos do passado. O provérbio que inspira o título do filme – «Cria corvos e eles arrancar-te-ão os olhos» – chama a atenção não só para a violência inscrita nesta família, mas também para a garra e a rebeldia que a protagonista, mais hábil a empunhar uma pistola do que a pegar em talheres, desenvolveu para sobreviver à sua «má educação». Apesar de este excelente filme de Carlos Saura emergir de uma época bastante precisa da história de Espanha, trabalha uma dimensão intemporal em que muitos de nós reconhecem tanto a sua própria infância como uma incompreensão que nunca se dissolve completamente em face da vida dos adultos.