O Cinéfilo
Preguiçoso já desistiu de compreender os arcanos da distribuição
cinematográfica. Armageddon Time (2022), o filme mais recente de James
Gray, que não é propriamente um desconhecido, está disponível no videoclube de
uma operadora de telecomunicações sem ter passado pelas salas de cinema
portuguesas. É um filme assumidamente autobiográfico, que se situa no início
dos anos 80, em Nova Iorque. Podemos compará-lo com outro filme recente, Os Fabelmans (2022), de Steven Spielberg. Existem semelhanças óbvias tanto no
percurso e na abordagem aos protagonistas, como na importância atribuída ao
papel da família. Outra semelhança é o excelente elenco adulto: aqui, Anne
Hathaway, Jeremy Strong e Anthony Hopkins. Há, no entanto, pelo menos uma
diferença interessante. Em Armageddon Time, o jovem Paul Graff não parece
mostrar o mínimo interesse pelo cinema. A sua ambição é ser artista visual,
sobretudo depois de uma visita de estudo ao Museu Guggenheim em que descobre as
obras de Kandinsky. Esta visita, assim como as cenas em que Paul vagueia
livremente pela cidade na companhia do melhor amigo, são das mais conseguidas
do filme, fazendo lembrar as deambulações de Jean-Pierre Léaud em Os 400
Golpes (1959). A amizade com Johnny, um dos eixos centrais do filme, é
retratada de forma sóbria e eficaz. O facto de Johnny ser negro, enquanto Paul
é branco e judeu, parece irrelevante para a relação que se estabelece entre
eles. Numa entrevista, Gray afirmou que as questões da raça e classe social são
aspectos fundamentais neste filme, mas essas questões, em particular as tensões
raciais, aparecem de forma latente, incrustadas no espírito do tempo e
reveladas através de alusões discretas, sem lições de moral. Armageddon Time
escapa a algumas armadilhas típicas do filme autobiográfico, mais ou menos
nostálgico. A infância é mostrada como um período desolador, apesar de alguns
momentos de felicidade intensa. Tal como a Ana de Cria Corvos (1976),
Paul parece completamente perdido num mundo feito à medida dos adultos,
caracterizado por regras e constrangimentos impenetráveis. O contraste violento
entre o mundo tal como ele é e as fantasias da infância domina por completo o
filme, marcado por um tom sombrio e melancólico, para o qual contribui uma
paleta cromática onde predominam tons outonais e pardos. Armageddon Time
dispensa epifanias finais ou sugestões de que a personagem está, finalmente,
pronta para transpor o limiar da idade adulta. De certo modo, Paul parece tão
perdido no início do filme como na cena final, na qual abandona um baile no Dia
de Acção de Graças a meio de um discurso proferido pelo pai de Donald Trump:
apesar de esta saída poder ser vista como uma revolta contra a perspectiva
elitista da escola privada onde está matriculado, também pode não passar de
outra fuga inconsequente. Gray declarou: «Queria fazer alguma coisa com
vitalidade imediata, com humanidade e calor humano, mesmo se a história fosse
triste.» Conseguiu. A tristeza não tem de ser uma tragédia. Faz parte da vida.
Ler também: A Cidade Perdida de Z (James Gray, 2016).