Foi uma surpresa encontrar numa lista de títulos considerados proustianos o último filme de Sergio Leone: Era Uma Vez na América (1984). Baseado no romance The Hoods, de Harry Grey (pseudónimo de um ex-gângster judeu), o filme acompanha cinco décadas da vida de um grupo de amigos que logo na infância mostram ser criminosos implacáveis. Começa com duas cenas violentas de vingança e passa para um antro de ópio em que Noodles (Robert De Niro) se refugia para escapar às consequências de uma denúncia supostamente bem-intencionada, mas que, por ter consequências trágicas, o obriga a fugir de Nova Iorque e a assumir uma identidade falsa durante trinta e cinco anos. Através de flashbacks em que as recordações, as incompreensões e os devaneios deste protagonista se confundem, o espectador vai sendo exposto a imagens de uma América com dimensão mítica, entre as décadas de 1920 (nos guetos de judeus do Lower East Side de Manhattan), 1930 (época da Lei Seca e dos seus clubes exuberantes) e 1960 (tempo do predomínio do crime em Nova Iorque). Desde o princípio, no entanto, a ligação com Proust é inegável, não só pela importância da memória e da reconstituição do passado e pela longa duração do filme (a versão completa tem 227 minutos), mas também porque há citações quase directas da Recherche, entre as quais o acto de espreitar por uma abertura na parede, a presença clandestina de Veneza (onde é filmada a cena do restaurante que Noodles manda fechar para um jantar a sós com Deborah), e o próprio regresso do protagonista a Nova Iorque em 1968, para visitar vivos e mortos e, como o narrador em Le Temps Retrouvé, assistir a uma espécie de ressurreição. Talvez o momento proustiano mais evidente e inesquecível seja aquele em que, quando perguntam a Noodles o que fez durante trinta e cinco anos de ausência, ele responde, reformulando o início da Recherche: «Levantei-me cedo.» Apesar de as personagens de Era Uma Vez na América serem gângsteres impiedosos, as cenas de violência são lentas e estilizadas, quase oníricas, e os temas mais importantes são a amizade («tive um amigo, foi uma bela amizade»), o amor, a traição e a inveja. A relação principal do filme, entre Noodles/De Niro e Max/James Woods tem uma dimensão arquetípica em que, expressando toda a intensidade e violência da amizade masculina, os amigos se traem mutuamente, cada um roubando a vida do outro, ou pensando que a rouba. Talvez o filme tivesse ganhado com a escolha de um actor menos histriónico e superficial do que James Woods para desempenhar o papel de Max. De Niro, pelo contrário, aprofunda a densidade psicológica de uma personagem que, por não conhecer outra linguagem, precisa de recorrer à violência até para expressar um amor quase eterno (a tristíssima cena de violação de Deborah/Elizabeth McGovern). Mesmo para quem detesta filmes de gângsteres, Era Uma Vez na América tem uma beleza indiscutível tanto do ponto de vista visual como no que toca à manipulação narrativa. Inicialmente, devido a todas estas características invulgares, o filme foi mal compreendido: a primeira versão americana sofreu uma mutilação de noventa minutos que muito prejudicou o filme, tendo sem dúvida sido factor decisivo para o seu fracasso comercial. Em 2012, foi divulgada uma versão restaurada, com a intervenção dos filhos de Leone e da Film Foundation de Martin Scorsese, que ajudou a recuperar a visão inicial do realizador. Permanecem algumas imperfeições, mas estas até reforçam a dimensão mítica desta obra, que, com Era Uma Vez no Oeste (1968) e Aguenta-te, Canalha (1971), faz parte de uma trilogia em que Sergio Leone investiu muito tempo e pensamento e que foi determinante para o estatuto que conquistou, depois de durante muito tempo ter sido considerado um mero autor de westerns spaghetti.
Outros filmes proustianos no Cinéfilo Preguiçoso: A Paixão de Swann (Volker Schlöndorff, 1984); All the Vermeers in New York (Jon Jost, 1990); A Grande Beleza (Paolo Sorrentino, 2013); Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro (Abdellatif Kechiche, 2017).