O cinema francês é fértil em percursos singulares, à margem dos géneros consagrados e das representações em certames oficiais. Tal deve-se a vários factores, entre os quais uma tradição de exaltação da diferença e da diversidade e a relativa abundância de fontes de financiamento para projectos independentes e alheios à ortodoxia. A carreira de Alain Cavalier, que se estende já por seis décadas e meia, é particularmente desconcertante. Cavalier especializou-se, nos anos sessenta, em filmes policiais e thrillers políticos repletos de estrelas (Romy Schneider, Trintignant, Delon), mas começou a realizar filmes muito mais pessoais a partir dos anos setenta. Depois do sucesso, estrondoso e inesperado, do belíssimo Thérèse (1986), enveredou por um caminho radical que o conduziu a uma série de filmes de registo documental, filmados com uma câmara digital e uma equipa reduzida ao mínimo. Estes filmes são quase sempre retratos de pessoas: representantes de ofícios, sobretudo em 24 Portraits d’Alain Cavalier (1987-1991); ou amigos e conhecidos, como em René (2001). O último filme em que adoptou um registo próximo da ficção, embora com contornos peculiaríssimos, foi o extraordinário Pater (2011). Graças a quem teve a boa ideia de o integrar na programação do DocLisboa deste ano, o Cinéfilo Preguiçoso pôde agora ver L’Amitié (2022). Cada uma das três partes deste documentário é dedicada a alguém de quem Cavalier se tornou amigo depois de ambos terem colaborado profissionalmente: o letrista e actor Boris Bergman; Maurice Bernard, produtor de Thérèse e marido da romancista e actriz bressoniana Florence Delay; e Thierry Labelle, actor em Libera Me (1993), que há vários anos trabalha como estafeta. As evidentes cumplicidade e amizade entre estes homens ajudam a tornar saliente uma característica do cinema de Cavalier que percorre toda a sua longa filmografia: a maneira sóbria e atenta como filma a pessoa enquadrada pela sua câmara, seja esta um actor a representar um papel, ou uma mulher ou um homem a «fazerem de si próprios». Entre as anedotas e recordações que emergem naturalmente durante as conversas filmadas em L’Amitié, sobressai um outro aspecto: a capacidade de Cavalier filmar ângulos, detalhes ou gestos que contribuem para enriquecer e tornar mais interessante o retrato que está a construir. É mais uma das muitas demonstrações de que ele não abdicou de ser cineasta quando optou por este registo artesanal e auto-suficiente. A inteligência narrativa e o sentido do plano estão intactos. Mais do que despojar-se de bagagem supérflua ou depurar, o que Cavalier fez ao longo do seu percurso foi sublimar a tarimba dos seus anos de formação (que incluíram uma escola de cinema – o famoso IDHEC – e a assistência de realização em dois filmes de Louis Malle) e de trabalho no cinema comercial, e transformar essa sabedoria num estilo pessoalíssimo. Esta combinação de experiência e intenção de ruptura deu-nos filmes que têm como traço distintivo uma generosidade imensa, e de onde nunca estão ausentes uma certa malícia e um espírito lúdico que são uma maneira de o realizador se mostrar, reforçando a ideia de que é ele o cicerone e de que não lhe cabe apagar-se diante do objecto do seu retrato. Quando se filma a caminho da casa de Boris Bergman com um ramo de flores na mão, o realizador de L’Amitié constrói uma situação dramática que contribui para nos dar a conhecer a personalidade e a riqueza humana do seu interlocutor. É ainda e sempre de cinema que se trata: uma ferramenta para examinar o mundo e a humanidade. Poucos sabem usar esta ferramenta com tanta empatia, gentileza e sagacidade como Alain Cavalier.