7 de julho de 2024

A Besta

Cada obra literária coloca desafios muito específicos a quem se aventura a adaptá-la para o cinema. The Beast in the Jungle, novela de Henry James publicada em 1903, está certamente entre aquelas que geram problemas mais árduos. Quase desprovida de acção, a novela assenta nos encontros entre um homem e uma mulher, ao longo de vários anos, e nos diálogos que mantêm, centrados num evento catastrófico e terrível, mal definido, que a personagem masculina está convencida de que se irá abater sobre a sua vida. Uma adaptação fiel, que se limitasse a reproduzir o texto de James e as situações descritas no livro, seria quase de certeza pouco interessante e supérflua. Em A Besta (2023), o realizador francês Bertrand Bonello optou pelo extremo oposto: a situação de base é a da novela, mas os encontros entre Gabrielle (Léa Seydoux) e Louis (George MacKay) abrangem três épocas e existências diferentes. O prenúncio da catástrofe, que aqui atormenta a personagem feminina, repete-se, parecendo concretizar-se em cada uma destas iterações: uma inundação fatal em 1910; um homicídio perpetrado por um Louis convertido à retórica de ódio dos incels, em 2014; e, por último, em 2044, a submissão da humanidade à inteligência artificial e a abolição da capacidade de sentir emoções. Fica-se com a impressão de ser esta a verdadeira catástrofe, depois dos falsos alarmes das épocas/vidas anteriores. Louve-se a ousadia de Bonello e dos co-argumentistas, que parecem apostados em testar a maleabilidade e resistência do conceito essencial do filme (o desastre adivinhado e sempre adiado), alvo de tratos de polé narrativos assaz violentos. É difícil imaginar como um filme tão ambicioso e maximalista, erigido sobre uma ideia tão abstracta, poderia ser coroado de sucesso. O fracasso perante o qual o espectador se vê é, sem dúvida, mais interessante do que o de um filme timorato, convencional e circunscrito a ideias estéticas convencionais: reflectir sobre as razões pelas quais A Besta falha talvez seja mais estimulante do que o visionamento do filme em si. No entanto, seria injusto negar que este contém momentos conseguidos e genuinamente cativantes, embora se concentrem nas cenas passadas em 1910. Nas épocas posteriores, predominam lugares-comuns dos filmes de terror e de ficção científica, e a profusão de símbolos e peripécias secundárias torna-se cansativa: mencione-se apenas os pombos e uma vidente que parece saída da cabeça de um imitador de David Lynch. Uma nota final de estupefacção relativa ao genérico final – ou melhor, à inexistência de genérico, substituído por um código QR. Parece que quem se der ao trabalho de seguir o link poderá até assistir a uma cena adicional. O Cinéfilo Preguiçoso nunca teve paciência para modernices supérfluas.

Outro filme de Bertrand Bonello no Cinéfilo Preguiçoso: Saint-Laurent (2014).