21 de julho de 2024

Conto de Verão

O Cinéfilo Preguiçoso refere tantas vezes Éric Rohmer como influência importante de numerosos filmes e realizadores, que já ia sendo tempo de escrever sobre Conto de Verão (1996), um dos seus filmes mais amados e mais evocados como fonte de inspiração. Ao longo de uma carreira que durou quase seis décadas, Rohmer debruçou-se quase exclusivamente sobre uma questão: o que leva as pessoas a agir desta ou daquela forma? As suas personagens são dotadas de consciência e livre-arbítrio, mas sentem uma angústia que deriva da certeza de que esse livre-arbítrio, em que se alicerça a moral, pesa por vezes bem pouco em face das contingências da vida, do acaso e das regras sociais. É ocioso tentar hierarquizar, por ordem de importância e gravidade, os dilemas das personagens rohmerianas. Num só ano, passamos de Jean-Louis Trintignant, que baseia a identificação da mulher da sua vida em pressupostos pascalianos (A Minha Noite em Casa de Maud, 1969), para Jean-Claude Brialy, que concebe estratagemas para acariciar o joelho de uma rapariga (O Joelho de Claire, 1970). Quanto a Gaspard (Melvil Poupaud), o protagonista de Conto de Verão, estudante de Matemática e músico amador que chega sozinho a uma cidade costeira da Bretanha, a sua prioridade é ocupar os dias que o separam do início de um novo emprego, de preferência com uma namorada. Como não há fome que não dê em fartura, acaba prometendo a três raparigas diferentes uma excursão à ilha de Ouessant. O imbróglio é resolvido pela chamada de um amigo que, à maneira de um Deus ex machina, lhe propõe a compra de um gravador, dando-lhe um pretexto para partir repentinamente, porque “la musique passe avant tout”. É legítimo comparar Gaspard com a Félicie de Conto de Inverno (1992), que, abdicando de procurar activamente a felicidade, espera, contra todas as probabilidades, pelo reencontro com o homem por quem se apaixonou. Félicie leva a sério a sua aposta pascaliana, ciente de que a improvável felicidade suprema é mais atraente do que qualquer outro cenário. A recompensa final (“Je sentais bien que tu sentais qu’il allait se passer des choses…”, diz a irmã de Félicie) contrasta com o que acontece a Gaspard: o acaso liberta-o da necessidade de tomar uma decisão, mas não existe ganho. Será que, no futuro, vai aprender a usar o livre-arbítrio de forma mais comedida, para não voltar a sabotar as suas hipóteses de felicidade? Conto de Verão serve ainda de resposta a uma questão que atravessa todo o cinema de Rohmer, que foi escritor antes de ser realizador: para quê filmar um texto? Dinard e as cidades vizinhas são aproveitadas como cenário com uma inteligência, elegância e economia de meios extraordinárias. As personagens rohmerianas entregam-se a longos diálogos e, com ou sem consciência disso, participam de uma confiança quase socrática nas palavras como instrumento de descoberta da verdade. As palavras, no entanto, não se confinam a um espaço mental: estão no mundo, coexistem com gritos das gaivotas e o ruído dos motores, fazem eco nas paredes, são emitidas por corpos que se movem, se afastam e se aproximam, correm e choram. (Será que Margot – a maravilhosa Amanda Langlet – se zangaria daquela forma com Gaspard se não dispusesse de um imenso areal para se afastar, e assim exprimir com o corpo a sua decepção?) Mostrando as palavras sacudidas pelos acidentes do mundo, os filmes de Rohmer formam uma das obras mais livres da história do cinema. Independentemente de estilos e géneros, essa liberdade, conquistada e exercida com a mesma determinação, serve inevitavelmente de inspiração aos realizadores das gerações seguintes.
 
Outro filme de Éric Rohmer no Cinéfilo Preguiçoso:  A Mulher do Aviador (1981).