Baseado num romance com o mesmo título que Clarice Lispector publicou em 1964, A Paixão segundo G. H. (Luiz Fernando Carvalho, 2023) teve uma passagem pelas salas de cinema portuguesas em Fevereiro de 2024, mas tão breve, que, quando o Cinéfilo Preguiçoso reparou, já não conseguiu apanhá-lo. Felizmente, passa agora nos canais TVCine. É difícil descrever a surpresa e a emoção que se sentia ao descobrir que era possível escrever em português com a liberdade linguística, literária e conceptual com que Lispector escreveu. Na medida em que a sua obra abriu caminho a outras vozes (não só femininas, nem apenas em português) – algumas com tanta popularidade como Elena Ferrante –, é possível que já não tenha o mesmo impacto. Ainda assim, um filme inspirado por um livro desta escritora suscita inevitavelmente curiosidade. Tanto no cinema como na televisão, o realizador brasileiro Luiz Fernando Carvalho já trabalhou a partir de livros, de escritores como Raduan Nassar, Eça de Queiroz, Machado de Assis e Milton Hatoum. Em relação a este título de Lispector em particular, tinha, no entanto, o desafio de enfrentar um texto concentrado no espaço e no tempo, quase sem acção, com poucas personagens e praticamente reduzido ao monólogo interior da protagonista. A própria narradora se descreve como alguém que procura dar forma ao informe, entregando-se totalmente à linguagem – a ponto de as palavras, em determinados momentos, não quererem dizer nada. A narradora assume que não tem medo de ser inexpressiva nem de escrever coisas de gosto duvidoso, se assim tiver de ser. A “paixão” mencionada no título refere-se precisamente a uma intensidade de percepção perante a vida, expressa no famoso símbolo da barata com o invólucro estalado que a protagonista descobre em sua casa. Caberia ao realizador captar essa mesma intensidade, através de todos os meios cinematográficos à sua disposição. Perante um texto destes, o maior risco, então, seria registar “teatro filmado” – ou seja, fazer um filme em que as palavras são mais importantes do que tudo o resto, sufocando aquilo a que chamamos cinema. Este risco não foi superado. Não se pode dizer que, enquanto cinema, A Paixão segundo G. H. seja um objecto muito complexo, com capacidade para, por si só, interessar a quem não tenha lido Clarice Lispector ou a quem não conheça bem a sua obra. Temos principalmente uma actriz a falar, filmada em grandes planos, ao som de uma banda sonora de elevado conteúdo emocional, que, com excertos de compositores como Mahler ou Górecki, chama demasiada atenção para si própria. A montagem, os movimentos de câmara e as transições entre planos soam a falso precisamente por parecerem tentativas forçadas de injectar cinema no texto e demonstrar a mais-valia da adaptação cinematográfica. Qualquer admirador de Lispector vê este filme com algum fascínio ao perceber como as palavras ganham vida, e só há elogios a fazer à actriz Maria Fernanda Cândido, na medida em que, com a sua interpretação, dá inteligibilidade a um texto difícil de articular e assimilar. Ficamos, ainda assim, a pensar em como poderia ser um filme verdadeiramente cinematográfico, inspirado por este ou outro livro de Clarice Lispector.