Desde sempre, Miguel Gomes habituou-nos a fazer de cada novo filme um virar de página brusco, ou, melhor ainda, um recomeço do zero. Existem, como seria inevitável, pontos em comum entre os seus filmes a nível estético e conceptual, o mais evidente dos quais talvez seja a pulsão metaficcional e um sentimento permanente de crise que a própria narrativa tende a incorporar. Predomina, no entanto, o sentimento de que Gomes e os seus colaboradores recorrem à tábua rasa como ponto de partida do processo criativo: cada filme é um desafio novo e pressupõe disponibilidade para aceitar e aproveitar as vicissitudes que vão ocorrer ao longo da sua gestação. No uso do preto-e-branco e na exploração do imaginário ocidental associado a territórios colonizados, Grand Tour (2024) faz lembrar Tabu (2012), mas distingue-se claramente deste pela relativa linearidade narrativa e por não apostar na exploração de memórias, sejam estas colectivas ou individuais: as personagens concentram a sua atenção no momento presente e no futuro imediato e o filme decorre numa época bem definida (1917), embora contaminada por anacronismos persistentes. A narrativa confunde-se com os trajectos paralelos de Edward (Gonçalo Waddington) e da noiva Molly (Crista Alfaiate), duas personagens que podiam ter saído de um conto de W. Somerset Maugham; ele foge, ela vai atrás dele, e é tudo. Não nos são dados contexto nem motivações profundas. Parte do interesse do filme reside no facto de a sua existência depender desta energia, da pusilânime dinâmica centrífuga de Edward e do optimismo e determinação de Molly. Ao mesmo tempo, esta dependência é uma vulnerabilidade que acaba por se fazer sentir de forma nítida: a história, só por si, tem um interesse reduzido, e Grand Tour pouco mais tem para oferecer do que a promessa de revelar se os esforços da noiva serão coroados de sucesso. As imagens recolhidas nas capitais asiáticas oferecem-nos uma componente documental cuja integração na lógica narrativa do filme nunca resulta em pleno. Não faltam momentos bem conseguidos, como aquele em que Molly, doente, em plena travessia de um rio nos confins da China, parece, por fim, dar-se conta da situação perigosa em que se meteu e perceber como as suas esperanças eram absurdas, adquirindo uma espessura dramática que lhe faltava até aí. Grand Tour deixa a impressão de ser uma obra ousada, a espaços fascinante, mas que exibe o esforço para resultar enquanto filme, no meio das dificuldades de rodagem e produção que sofreu (cortes no financiamento, filmagens canceladas devido à Covid-19). A gestão de crise, indissociável da metodologia de trabalho de Gomes, foi aqui menos feliz do que no passado. O Cinéfilo Preguiçoso saúda a atribuição do prémio de melhor realizador pelo júri do festival de Cannes, presidido por Greta Gerwig, mas teria preferido que esta distinção recompensasse obras como Aquele Querido Mês de Agosto (2008) ou Diários de Otsoga (2021), dois filmes que ilustram esplendidamente a superação de crises e impasses criativos que quase os fizeram soçobrar.
Devido a afazeres vários, o Cinéfilo Preguiçoso terá de fazer uma pausa nas actualizações durante o mês de Outubro. Bons filmes e até Novembro!
Outros filmes de Miguel Gomes no Cinéfilo Preguiçoso: Diários de Otsoga (2021), As Mil e Uma Noites: Volume 1, o Inquieto (2015), As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado (2015), As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado (2015).