No filme Andrei Rublev (1966), retratando um
período turbulento da história da Rússia que culmina nas invasões tártaras, Tarkovsky
oscila entre o épico, o histórico e o cósmico, e o individual, o mínimo e o
circunstancial. Por um lado, temos uma produção gigantesca e complexa, com um
número impressionante de figurantes e de diferentes focos de atenção em cada plano
meticuloso. Por outro lado, somos surpreendidos pela atenção que o realizador
presta a pormenores ínfimos, como formigas junto a raízes de árvores, um floco
de neve, uma folha de árvore, as tropelias de uma criança, um cão. De certo
modo, o filme lembra os quadros de Bruegel, em que diversos pormenores mínimos
e circunstanciais são enquadrados num acontecimento histórico que afecta uma
multidão, sem no entanto perderem a individualidade que os distingue. Pelo caos
da História avança o pintor de ícones Andrei Rublev (c. 1360-1430), tentando
perceber quem é como pessoa e como artista. Ao longo do tempo, vemo-lo sucessivamente como monge errante, juntamente com
Daniil e Kirill, em busca de trabalho; como aprendiz de Teófanes; intrigado por
celebrações pagãs; debatendo-se com a dificuldade de representar o juízo final
numa catedral; e testemunhando a destruição causada pelos tártaros em 1408.
Mergulhado numa crise espiritual e artística, Andrei regressa ao convento de
que partira no início do filme, fazendo um voto de silêncio e recusando-se a
voltar a pintar. O episódio final do filme é, sem dúvida, o mais belo e o mais comovente.
Perante o exemplo de um jovem sineiro que dirige centenas de pessoas quando
tenta pela primeira vez fabricar um sino sem ter conhecimentos nem experiência
para tal, Andrei quebra o silêncio e decide voltar a pintar. O som do sino,
ecoando contra todas as expectativas, como que marca o final de um percurso
onde couberam a dúvida, a penitência e a descoberta do amor pelas pessoas e
coisas terrenas, e liberta o pintor para realizar a sua vocação. O paralelismo
entre o jovem sineiro e o próprio Tarkovsky, que aos 34 anos realizava apenas a sua segunda longa-metragem e procurava dominar uma produção
de dimensões gigantescas, é transparente mas nem por isso menos eficaz. A obra
integral de Tarkovsky estará em exibição no cinema Nimas até 16 de Março.