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filme Shirley: Visions of Reality
(2013), visto em DVD, o realizador e autor dos textos Gustav Deutsch reconstitui
treze quadros do artista americano Edward Hopper. Deutsch impõe uma linha
narrativa às imagens que vai trabalhando, imaginando que as figuras femininas
destes quadros entre os anos 1930 e 1960 são sempre a mesma mulher, uma actriz
que reflecte, em monólogo interior, não só sobre a sua própria vida privada mas
também sobre o contexto histórico em que se situa, abrangendo temas como a Grande
Depressão americana, a Segunda Guerra Mundial, a luta de Martin Luther King, ou
a «caça às bruxas» nos Estados Unidos. Visto que os quadros de Hopper deixam
uma impressão de intemporalidade ou de suspensão do tempo, tanto a orientação
narrativa deste filme como a sua articulação com a História são surpresas que
causam algum estranhamento, nem sempre bem conseguido. Nos piores momentos, Shirley parece demasiado conceptual,
sobretudo devido à vertente histórica em que certos monólogos insistem de modo
um pouco forçado. Nos melhores momentos, no entanto, imagina um antes e depois
credíveis e enriquecedores para imagens que todos conhecemos. Já muito se falou
da ligação de Hopper com o cinema. Sem esquecer esta ligação, Deutsch, em dois
belíssimos momentos, explora dois quadros relacionadas com o tema: New York Movie (1939) e o menos
conhecido, mas notável, Intermission
(1963). Não só o próprio Hopper confessou que resolvia as situações de bloqueio
criativo passando uma semana a ver filmes no cinema, como vários realizadores, por
exemplo Wim Wenders, Terrence Malick e o próprio Hitchcock, se inspiraram na sua
obra. É inevitável que estas apropriações continuem. Na televisão, a série Mad Men cultivou uma estética claramente
hopperiana. Recentemente, até na décima primeira temporada, de qualidade muito
irregular, da série Ficheiros Secretos
tivemos a surpresa de ver um excelente episódio, quase sem diálogos, com
referências hopperianas explícitas que mostram a complexidade da obra do
artista e o modo como esta aponta para o futuro. O filme de Gustav Deutsch
insere-se nesta genealogia que continua a dar a ver novas dimensões de imagens
que parecem tão simples e familiares mas sugerem e anunciam ideias diferentes e
por vezes inesperadas e contraditórias.