Depois
de ler tantos elogios a Nós, de
Jordan Peele (2019), o Cinéfilo Preguiçoso ficou com curiosidade. O filme
começa de modo interessante: num parque de diversões dos anos oitenta, a
protagonista, uma menina usando uma T-shirt alusiva ao videoclip de “Thriller”
de Michael Jackson, que acabou de ganhar numa barraca de tiro, foge à
vigilância dos pais e entra num labirinto de espelhos, onde depara com uma
sósia. O resto do filme remete para esse encontro, cuja relevância é desvendada
aos poucos. Estruturado como um filme em que há assalto e invasão de casa, com
uma piscadela de olho a Sozinho em Casa
(Chris Columbus, 1990), Nós vai
alternando entre 1986 e o presente, explorando ironicamente, transfigurando ou
invertendo várias referências da cultura pop e alguns estereótipos,
nomeadamente as convenções do filme de
terror e a representação habitual dos afro-americanos no cinema e do próprio
tópico do racismo, aqui abordado de modo mais abrangente do que é habitual. Nós assenta numa história sobre pessoas
que têm tudo e outras que nada têm, apresentadas como duplos das primeiras,
onde a dada altura os protagonistas concluem que terão de fugir para o México,
mas estão cercados por um muro de desprivilegiados de mãos dadas. Talvez a
maior virtude do filme seja desencadear uma reflexão poderosa sobre as
injustiças e os absurdos do contexto político americano actual a partir dos
seus paralelos na acção. O espectador sai da sala com a sensação de ter visto
um filme inteligente e bem pensado – talvez até pensado demais –, mas também com
dúvidas sobre se daqui a alguns anos, desligado ou afastado desta
contextualização política, Nós valerá
por si só. Seria interessante ver Jordan Peele trabalhar registos diferentes,
com mais tensão psicológica e menos pancadaria e sangue (como, aliás, parece
ter sido o caso na primeira longa-metragem deste realizador, Get Out, de 2017, que lhe valeu o Óscar
de melhor argumento original e que o Cinéfilo Preguiçoso ainda não viu). Apesar
de se perceber que as cenas mais violentas são, em geral, filmadas de modo
irónico, essa ironia não contribui necessariamente para aprofundar o sentido. Pelo
contrário, representa o reforço de camadas de significado que não precisavam de
mais saturação. É um problema que contamina a maioria do filme: há sempre uma
referência mais, um piscar de olhos, uma reviravolta, uma surpresa, um coelho branco,
uma ligação a Alice no País das Maravilhas. Do mesmo modo, investir numa
representação exagerada das diferenças entre os protagonistas e os seus duplos
não contribui para tornar o filme mais subtil. Teria sido preferível apostar em
diferenças mais específicas, em vez de se representar os duplos desprivilegiados enquanto
meros seres humanos de segunda, como acontece no discurso americano mais
racista.