Na
esteira da boa impressão deixada por Em Chamas (2018), o Cinéfilo
Preguiçoso decidiu ver Poesia (2010), o filme anterior do realizador sul-coreano
Lee Chang-Dong, recuperado oportunamente numa sessão de fim-de-semana do cinema
Monumental. Poesia é daqueles filmes em que paira permanentemente o
risco do apelo ao sentimentalismo – neste caso, totalmente superado. A
personagem principal, Mi-ja, é uma senhora que depende de um subsídio e de um
pequeno emprego como cuidadora para sobreviver e sustentar o neto adolescente.
Este vê-se envolvido num caso sórdido de violação colectiva seguida de suicídio
da vítima. Como acontece no filme Em Chamas, Lee Chang-Dong demonstra a
capacidade de explorar a mente e o pensamento dos protagonistas sem prejudicar
a caracterização sociológica dos contextos que estes percorrem. Mi-ja, que
recebe o diagnóstico de Alzheimer a meio do filme, decide inscrever-se num
curso de poesia que desperta nela o desejo, quase à beira da obsessão, de
conseguir exprimir-se em verso, numa altura em que começa a perder as palavras.
Lee Chang-Dong não convida o espectador a apiedar-se da sua personagem, mas
tão-pouco a reveste da aura de lutadora ou de cínica: a sua atitude tem pouco
de estóico e ela não se coíbe de desabafar ou refilar. Contudo, mostra uma
incapacidade total para transmitir aos outros os tremendos dissabores por que
passa, ao contrário dos seus colegas de curso, pródigos em histórias de vida. O
filme coloca em paralelo, felizmente sem forçar demasiado essa nota, a
desagregação cognitiva de Mi-ja num universo inóspito e a sua capacidade de ver
as coisas do mundo de uma maneira nova, livre de qualquer lastro ou pressuposto,
como recomenda o professor de poesia. Esta personagem extraordinária talvez
leve demasiado à letra este ensinamento, interrompendo a acção em vários
momentos para tomar notas num caderninho; ao fazê-lo, no entanto, produz
beleza: é a única aluna do curso que consegue redigir um poema. A qualidade
deste texto, lido na íntegra nos últimos momentos do filme, é o que menos
importa: o verdadeiro feito de Mi-ja é o de, ao sair de cena, trazer de novo à
vida a adolescente morta, num daqueles milagres que só no cinema são possíveis.
Ficamos sem saber o que acontece a esta protagonista: ela dissolve-se na
própria matéria do cinema, em imagens e em palavras, num processo que não
provoca estranheza e que surge como consequência natural da compaixão que a
move, em contraste com os arranjinhos, esquemas e calculismo que a rodeiam.
Talvez seja de evitar falar em “destino” perante um filme tão pouco dado à
grandiloquência, mas é nítida a sensação de que algo de profundamente justo se
cumpriu no final do percurso tão singular da senhora Mi-ja.