Visto
na Cinemateca, o filme Sans Lendemain (traduzido por Piedosa Mentira,
um título com um certo sabor datado), de Max Ophüls (1939), conta a história de
uma mulher de alta sociedade que se vê obrigada a trabalhar num clube nocturno
parisiense para sobreviver e sustentar o filho. Além da meticulosidade com que
o realizador retrata os espaços e tempos contrastantes que a protagonista
percorre, talvez a característica mais marcante do filme seja a sensação de
estranheza transmitida por todos os actos de Evelyn (a magnífica Edwige Feuillère,
que em 1948 viria também a ser a inesquecível protagonista de L’Aigle à Deux
Têtes, de Jean Cocteau), assim transfigurando o que poderia ser uma
história banalíssima, presente em tantos filmes menores. Evelyn parece
deslocada em todos os contextos, vendo-se obrigada a representar uma personagem diferente
em cada um deles. A estranheza é reforçada pelo facto de ela, nas diversas
fases da sua vida, se esforçar por proteger determinados segredos, à custa da
sua própria felicidade. Sans Lendemain caracteriza-se por uma atmosfera
irracional, próxima da do sonho ou pesadelo, em que a protagonista parece
condenada a realizar acções que só a prejudicam, devido à sua obstinação em
esconder a verdade. No clube nocturno, Evelyn participa no espectáculo como um
autómato. Da primeira vez em que a vemos, na confusão dos bastidores, pede um
comprimido para as dores de cabeça. A partir do momento em que por acaso se
cruza na rua com Georges, um amor antigo, faz tudo para encenar uma existência falsa
em que continua a ser uma grande senhora, alugando um apartamento luxuoso e
endividando-se com um proxeneta para que este financie as roupas e os restantes
endereços da fantasia. Mesmo Georges é desprovido de densidade, agindo de modo
completamente irracional: apesar de nunca mais a ter visto depois de certo dia
ela o ter abandonado num cinema, não lhe pede quaisquer explicações, como se
nada se tivesse passado durante os anos de interregno e a relação entre ambos pudesse
ser simplesmente reatada. Se Ophüls fosse dado a esse género de truques, até se
poderia especular que todo o filme, a partir do reencontro inverosímil, se
passa apenas na cabeça da personagem principal. Não há uma única cena de
felicidade sem que os laivos de escuridão sejam evidentes na expressão de Evelyn: Ophüls
transmite as correntes opostas do filme com uma mestria impressionante.
Dir-se-ia que até o final, convencional neste tipo de melodrama e anunciado
pelo título e por alguns diálogos, se afirma como ajustado e inevitável no
contexto da lógica estranha em que se insere. Há quem divida a carreira de
Ophüls em fases melhores e piores, mas Sans Lendemain, realizado na
parte final da primeira estadia do realizador em França, demonstra não só que esse
exercício é ocioso, mas também que o talento para criar obras complexas e
pessoais usando a estrutura e os elementos do melodrama tradicional foi um
elemento duradouro na carreira deste realizador.
Outros
filmes de Max Ophüls no Cinéfilo Preguiçoso: Divine (1935); Yoshiwara (1937); Carta de Uma Desconhecida (1948); La Ronde (1950); Le Plaisir (1952).