Baseado
num conto de Haruki Murakami incluído no livro O Elefante Evapora-se, Em
Chamas foi realizado por Lee Chang-Dong (2018), também ele escritor, mas mais
conhecido em Portugal como realizador do filme Poesia (2010). Em Chamas
transforma ligeiramente as personagens do autor japonês, situando a acção na
Coreia do Sul. O guião parece segregar uma história possível para aquilo que
não é narrado no conto de Murakami, intensificando a sua atmosfera incerta com
sugestões de paranóia e desenvolvendo o interesse pelo espaço, nomeadamente por
espaços abandonados, que os textos do autor tantas vezes cultivam. Como
protagonistas, temos um aspirante a escritor, uma rapariga que sobrevive a
custo, recorrendo a expedientes dúbios, e Ben, um rapaz rico e misterioso, descrito
como uma espécie de Gatsby. Talvez a característica mais interessante de Em Chamas seja o modo como entende o
cinema como reconhecimento do espaço, dedicando enorme atenção aos pormenores
que distinguem cada um dos lugares onde a acção decorre, explorados muitas
vezes como se neles se procurasse pistas para resolver um enigma nunca
totalmente verbalizado. A banda sonora de Mowg é essencial para transmitir essa
sensação, sobretudo quando acompanha os percursos do aspirante a escritor
seguindo o rapaz rico de carro (em cenas que podem recordar alguns momentos de Vertigo), procurando a rapariga, ou
correndo pelos campos, no meio das estufas abandonadas que Ben confessa que gosta
de incendiar. A acção decorre em Paju, entre o rural e o urbano. Na cidade,
temos movimento, cafés e restaurantes agradáveis, supermercados, o apartamento
minúsculo, atravancado e escuro da personagem feminina, com um gato
(invisível?) chamado Bolha e com vista para a Torre de Seoul, bem como o
apartamento luxuoso do rapaz rico. Na aldeia, temos a quinta desarrumada do
aspirante a escritor, na fronteira com a Coreia do Norte, além de espaços vastos e
quase desertos, esporadicamente ocupados por estufas, casas ou instalações
industriais ou agrícolas. A maneira inteligente como estes espaços são
explorados e associados a cada personagem contribui decisivamente para a
coerência do filme e para a caracterização psicológica dos intervenientes. Outro
dos elementos mais importantes é o modo como as personagens vão dando
ou encontrando sub-repticiamente pistas para a compreensão da acção, estando
uma das mais relevantes contida numa conversa aparentemente inofensiva sobre
mímica em que a rapariga explica que o segredo dessa arte é não acreditar na
presença do que é representado, mas sim esquecer a sua ausência. Contudo, o
argumento nunca cai no erro de oferecer ao espectador uma explicação para os
acontecimentos mostrados, gerindo habilmente a ambiguidade até ao final. Por todos
estes motivos, Em Chamas não deixa
ficar mal nem os leitores de Murakami nem os amantes de thrillers psicológicos.