19 de maio de 2019

Em Chamas


Baseado num conto de Haruki Murakami incluído no livro O Elefante Evapora-se, Em Chamas foi realizado por Lee Chang-Dong (2018), também ele escritor, mas mais conhecido em Portugal como realizador do filme Poesia (2010). Em Chamas transforma ligeiramente as personagens do autor japonês, situando a acção na Coreia do Sul. O guião parece segregar uma história possível para aquilo que não é narrado no conto de Murakami, intensificando a sua atmosfera incerta com sugestões de paranóia e desenvolvendo o interesse pelo espaço, nomeadamente por espaços abandonados, que os textos do autor tantas vezes cultivam. Como protagonistas, temos um aspirante a escritor, uma rapariga que sobrevive a custo, recorrendo a expedientes dúbios, e Ben, um rapaz rico e misterioso, descrito como uma espécie de Gatsby. Talvez a característica mais interessante de Em Chamas seja o modo como entende o cinema como reconhecimento do espaço, dedicando enorme atenção aos pormenores que distinguem cada um dos lugares onde a acção decorre, explorados muitas vezes como se neles se procurasse pistas para resolver um enigma nunca totalmente verbalizado. A banda sonora de Mowg é essencial para transmitir essa sensação, sobretudo quando acompanha os percursos do aspirante a escritor seguindo o rapaz rico de carro (em cenas que podem recordar alguns momentos de Vertigo), procurando a rapariga, ou correndo pelos campos, no meio das estufas abandonadas que Ben confessa que gosta de incendiar. A acção decorre em Paju, entre o rural e o urbano. Na cidade, temos movimento, cafés e restaurantes agradáveis, supermercados, o apartamento minúsculo, atravancado e escuro da personagem feminina, com um gato (invisível?) chamado Bolha e com vista para a Torre de Seoul, bem como o apartamento luxuoso do rapaz rico. Na aldeia, temos a quinta desarrumada do aspirante a escritor, na fronteira com a Coreia do Norte, além de espaços vastos e quase desertos, esporadicamente ocupados por estufas, casas ou instalações industriais ou agrícolas. A maneira inteligente como estes espaços são explorados e associados a cada personagem contribui decisivamente para a coerência do filme e para a caracterização psicológica dos intervenientes. Outro dos elementos mais importantes é o modo como as personagens vão dando ou encontrando sub-repticiamente pistas para a compreensão da acção, estando uma das mais relevantes contida numa conversa aparentemente inofensiva sobre mímica em que a rapariga explica que o segredo dessa arte é não acreditar na presença do que é representado, mas sim esquecer a sua ausência. Contudo, o argumento nunca cai no erro de oferecer ao espectador uma explicação para os acontecimentos mostrados, gerindo habilmente a ambiguidade até ao final. Por todos estes motivos, Em Chamas não deixa ficar mal nem os leitores de Murakami nem os amantes de thrillers psicológicos.