O Cinéfilo Preguiçoso viu dois filmes da retrospectiva que a Cinemateca está a dedicar ao realizador Jean-Claude Brisseau, desaparecido em Maio. De Bruit et de Fureur (1988) e Céline (1992) foram as longas-metragens realizadas imediatamente antes e depois de Noce Blanche (1989), um inesperado e nunca repetido sucesso comercial. Nesta fase da sua carreira, embora ainda se notem algumas hesitações no estilo e na abordagem dos temas, algumas das principais obsessões de Brisseau já estão presentes, sobretudo em Céline, onde se reconhecem tópicos de obras posteriores: em particular, a cumplicidade entre personagens femininas, a personificação da morte e as visões induzidas por meditação remetem, por exemplo, para Coisas Secretas (2002) e Que o Diabo nos Carregue (2017). De Bruit et de Fureur, por outro lado, possui uma vertente realista e sociológica que se foi desvanecendo com o tempo no trabalho deste autor. Os dois filmes apresentam diferenças claríssimas mas também alguns pontos em comum. Entre estes, destaca-se a importância de uma dimensão a que podemos chamar onírica, supra-realista ou visionária, traduzida nas aparições presenciadas por François, o jovem protagonista de De Bruit et de Fureur, e nos fenómenos que rodeiam as sessões de meditação a que Céline se entrega para recuperar o equilíbrio emocional, após uma série de percalços que quase a fazem desistir de viver. Esta dimensão é filmada sem truques nem linguagem própria: Brisseau sempre fez questão de mostrar o sobrenatural e as visões como se de um plano normal se tratasse, sem soluções de continuidade visíveis. (Note-se que Lisa Hérédia, que desempenha papéis maiores nestes dois filmes, foi montadora de quase toda a obra de Brisseau, embora creditada com outro nome.) O onírico, no entanto, nunca funciona como pretexto para o escapismo: as cenas finais de ambos os filmes remetem para uma resolução de conflitos ao nível da vida real. Outro ponto em comum, que, no fundo, decorre do anterior, é a referência aos milagres, ou, melhor dizendo, à sua inexistência. «Porque não fizeste um milagre?», pergunta François à aparição muda, antes do desfecho insuportavelmente trágico. Brisseau não é Dreyer, e provavelmente nunca quis ser. O milagre com que Ordet (1955) culmina seria obsceno em De Bruit et de Fureur. A ancoragem à realidade é uma constante na filmografia deste cineasta, tanto nos filmes passados nos deprimentes subúrbios parisienses como naqueles que rodou no seu apartamento da Rue Marcadet. Apesar destas semelhanças, De Bruit et de Fureur e Céline são formalmente muito diferentes: linear e depurado, o segundo; pletórico e excessivo, o primeiro, como convém a um filme cuja epígrafe shakespeariana remete para o caos de um mundo sem leis a não ser as do sangue, no duplo sentido de família e de violência excessiva e descontrolada. A coerência de princípios e de abordagem coexistiu, ao longo da carreira de Brisseau, com a experimentação e a liberdade criativa que fazem de cada um dos seus filmes um objecto único. Esta retrospectiva, que se prolonga até ao final do mês, é uma ocasião imperdível para o constatar.