3 de maio de 2020

J'Accuse


Basear um filme em episódios históricos obriga quem o faz a escolhas complexas. Em J’Accuse (2019), visto esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, Roman Polanski debruça-se sobre o caso Dreyfus, que envolveu um oficial condenado erradamente por traição à pátria e que dividiu radicalmente a opinião pública francesa no final do século XIX, influenciando o mapa político e sociológico que vigorou em França ao longo das décadas seguintes. Ao passo que, em O Jovem Karl Marx (2017), a fama global do autor de O Capital permitia aos argumentistas darem-se ao luxo de explorar episódios menos conhecidos do seu percurso, sem perda de impacto, em J’Accuse lidamos com acontecimentos menos conhecidos e mais dificilmente reconhecíveis pelo público. Talvez por isso, Polanski optou por mostrar os detalhes mais marcantes deste episódio, sem perder tempo com derivas colaterais ou explorações psicológicas. A linha condutora é a investigação pessoal iniciada pelo coronel Picquart, que, depois de descobrir falhas clamorosas no processo que levou à condenação de Dreyfus, tenta, contra os conselhos e admoestações dos superiores, reabrir este processo. Mais do que personagem principal, é Picquart (numa interpretação excelente de Jean Dujardin, talvez mais merecedora de óscar do que a de O Artista) quem engendra a acção: sem ele, não haveria caso Dreyfus. Resulta daqui um filme objectivo, linear (apesar de numerosas analepses) e até algo frio, cujo tom de sobriedade marcial contrasta com algumas das obras anteriores de Polanski, marcadas pela exuberância visual e pelo histrionismo, como Carnage (2011) e La Vénus à la Fourrure (2013). A superabundância de pormenores e revelações, que traz à memória cinéfila Zodiac (o filme de 2007 que é um dos mais fascinantes relatos sobre uma investigação que o cinema nos ofereceu nos últimos tempos), torna-se, por vezes cansativa, e o filme ressente-se do esforço de explicar em pouco mais de duas horas, de forma compreensível, um caso tão intrincado. Talvez o aspecto mais conseguido de J’Accuse seja a exploração dos conceitos de honra e dever que atravessa o filme e culmina na notável cena final entre Dreyfus e Picquart: cumprir o dever equivale a seguir ordens ou a escutar a consciência? Reconheça-se ao filme a virtude de não escamotear a complexidade da questão, apesar de defender de modo claro e eloquente a segunda opção.