Até
têm passado na televisão alguns filmes interessantes que lhe escaparam quando estrearam
em sala, mas esta semana, para variar, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver em DVD
um filme recente. A Flor da Felicidade, de Jessica Hausner (2019), é recente ao
ponto de, inesperadamente, encontrarmos nele premonições sobre a actual
pandemia, apesar de ter sido escrito e realizado antes de ser possível saber o
que ia acontecer. Quem viu Amour Fou (2014), o filme anterior de Jessica
Hausner, reconhecerá o tom estranhamente neutro e desligado com que as
personagens de A Flor da Felicidade, à semelhança das marionetas de Kleist, parecem
encarar a vida. Mas enquanto em Amour Fou as personagens resistiam através
da ironia, em A Flor da Felicidade todas parecem entregar-se a uma felicidade
dúbia. O enredo gira em torno de um laboratório que, através da manipulação
genética, cria uma planta que exige cuidados e carinhos diários, mas de cuja
flor emana um aroma que inspira felicidade. Uma das personagens suspeita, no
entanto, de que o vírus usado como vector para a manipulação genética entrou em
mutação e começou a contagiar as pessoas que inalam o pólen, transformando-as
numa espécie de zombies felizes que tudo fazem para proteger as plantas, como “personagens
de uma peça de teatro em que interpretam o seu próprio papel”. O uso de
máscaras é recomendado, suscitando no espectador de 2020 uma sensação de déjà
vu. As suspeitas em relação ao vírus nunca são totalmente esclarecidas,
visto que só algumas personagens supostamente pouco fidedignas acreditam nessa
possibilidade e as mudanças que ocorrem nas outras podem ter outras explicações.
Para lá dos paralelos imprevistos com a situação actual, A Flor da Felicidade é
uma meditação irónica sobre a felicidade, sobre a autenticidade das emoções
humanas e sobre os efeitos de determinados fármacos como o Prozac. Além disso, aborda
de modo complexo as ambivalências da maternidade – ironicamente, apesar de não
ter disponibilidade para dar atenção ao seu próprio filho, a protagonista cria
uma planta que exige cuidados quase maternos. O ambiente asséptico recorda Safe
(1995), de Todd Haynes, outro filme muito referido a propósito desta
pandemia. Apesar de os acontecimentos de A Flor da Felicidade serem frios e
neutros, a ponto de parecerem inofensivos, esta atmosfera combina-se de modo
dissonante com algumas convenções do filme de terror, como uma banda sonora
arrepiante ou a expressão vazia das crianças. O Festival de Cannes chamou
a atenção para esta característica ao distinguir a interpretação absolutamente
contida e sem qualquer histrionismo de Emily Beecham com o prémio de melhor
actriz. Não se pode dizer que A Flor da Felicidade seja um filme comovente e
apaixonante, mas de certeza que não era esse o objectivo da realizadora. Neste
filme, Jessica Hausner faz muitas coisas com pouco, explorando de modo complexo
diferentes dimensões da natureza humana.