25 de outubro de 2020

Mur Murs

 

Desde o início da sua carreira, Agnès Varda mostrou vontade de explorar em paralelo os registos do documentário e da ficção, além de uma variedade refrescante de registos híbridos. Em Mur Murs (1981), visto esta semana em DVD, temos um documentário puro, cujo tema são as pinturas murais na cidade de Los Angeles. Há alguns momentos breves de cariz ficcional protagonizados pela actriz Juliet Berto, que pouco acrescentam ao filme mas que abrem o apetite para o eventual visionamento futuro de Documenteur (1981), ficção realizada pela mesma cineasta, nos mesmos espaços e na mesma época. (A edição da Criterion emparelha estes dois filmes; no DVD da Midas Filmes visto pelo Cinéfilo Preguiçoso, foi escolhido o belíssimo Daguerreótipos, de 1976). Em Mur Murs estão presentes de forma muito marcada algumas características típicas do cinema de Varda. Em particular, é notável a atenção aos entrevistados – todos eles artistas gráficos especializados em pinturas murais – e às suas declarações e motivações: longe de tentar impor uma narrativa ou opinião, a realizadora, limitando as suas intervenções a breves comentários em off, deixa que os factos e as imagens falem por si, embora nunca abdique do seu ponto de vista. São claras tanto a empatia com os artistas como a consciência da efemeridade dos objectos que estes produzem, em parte por causa da expansão imobiliária, que gera situações ridículas, como a obstrução de uma pintura magnífica por um prédio construído a um metro de distância. A transição dos anos 70, ainda na ressaca do movimento Flower Power, para o cinismo e plutocracia que emergiram nos anos 80 surge de forma muito nítida aos olhos do espectador de hoje, conhecedor da História. É dado destaque a questões de identidade cultural e étnica: a dicotomia entre a arte das galerias, fechada e mercantil, e a arte urbana, aberta e democrática, percorre todo o filme, sendo discutidas de forma explícita questões que estão hoje, talvez mais do que nunca, na ordem do dia: a visibilidade das minorias, a violência do Estado, a arte como meio de reforçar o sentido de comunidade. Este último traço aproxima Mur Murs de Olhares, Lugares (2017): recorde-se, neste, a cena em que os rostos dos antigos mineiros são afixados nas paredes do bairro residencial abandonado. Ao longo dos sessenta e quatro anos que durou a sua carreira, Agnès Varda conseguiu, como muito poucos, equilibrar a liberdade, a curiosidade em relação ao próximo e uma coerência artística impressionante.
 
Outros filmes de Agnès Varda no Cinéfilo Preguiçoso: La Pointe Courte (1955), Varda por Agnès (2019).