Como vimos na semana passada, em Tetro (2009), Francis Ford Coppola inclui excertos de Os Contos de Hoffmann (1951) de Michael Powell e Emeric Pressburger. Deste filme, Coppola recupera uns momentos intrigantes em que o corpo de um autómato feminino se desintegra em partes que parecem reter ainda alguma vida – e que foram motivação suficiente para o Cinéfilo Preguiçoso procurar o DVD. Depois de ver a peça Os Contos Fantásticos de Hoffmann (1851), de Jules Barbier, inspirada em três contos de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Jacques Offenbach (1819-1880) compôs uma ópera fantástica com o mesmo título. Mais tarde, Thomas Beecham, que já tinha trabalhado com Powell e Pressburger em Os Sapatos Vermelhos (1948), sugeriu-lhes que fizessem um filme a partir da ópera, com libreto adaptado por Dennis Arundell. O filme segue de perto a estrutura original, dividindo-se em três partes, com um prólogo e uma conclusão. O protagonista é o próprio Hoffmann, que descreve a sua carreira de poeta através das mulheres por quem se apaixonou: em Paris, uma boneca mecânica; em Veneza, uma cortesã; numa ilha grega, uma cantora de ópera intensa e apaixonada, mas com pouco tempo de vida (sofre de tuberculose); em Nuremberga, cenário do prólogo e da conclusão, uma bailarina. Através desta descrição, é fácil perceber que são explorados em espaços emblemáticos alguns temas ou obsessões oitocentistas, como os autómatos, as marionetas, as personificações do mal, a tuberculose e a suposta volubilidade das mulheres. Desdobrado em quatro personagens, o feminino é encarado através de figuras que dão corpo a várias fantasias masculinas, ao mesmo tempo que de boa vontade se deixam manipular pelo Mal, encarnado sempre pelo mesmo actor (Robert Helpmann), em diferentes manifestações/personagens. Os realizadores poderiam ter optado por uma abordagem mais realista aos cenários, mas preferiram criar um mundo de fantasia completamente artificial e cheio de bizarria, que nos faz pensar que este filme pode ter sido uma grande influência para Eyes Wide Shut (1999), de Stanley Kubrick. Os Contos de Hoffmann já foi descrito como uma fantasmagoria que representa a vida interior do artista. Podemos dizer que forma um díptico com Os Sapatos Vermelhos, e não só por partilhar alguns elementos do elenco deste filme: enquanto, em Os Sapatos Vermelhos, a bailarina Vicky (Moira Shearer) tem de escolher entre a dedicação absoluta à dança e uma vida normal, em Os Contos de Hoffmann o protagonista vê-se obrigado a defender a sua sanidade e a integridade da sua alma num mundo de malevolência e sedução, acabando por perceber que a poesia tem de ser um acto de resistência e exige entrega total. Quase todos os actores e bailarinos são dobrados por cantores, o que permite total sinergia entre música, dança e cinema. O filme mantém um impacto visual avassalador, mas em que talvez a interpretação musical (em que assentam todos os diálogos) seja a faceta que mais envelheceu. Além de Francis Ford Coppola, realizadores como Martin Scorsese e George A. Romero manifestaram entusiasmo por Os Contos de Hoffmann, mas não se pode dizer que Powell e Pressburger tenham deixado muitos herdeiros, o que torna ainda mais singular a obra destes realizadores.
Ler também: Peeping Tom (Michael Powell, 1960).