O Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes (2022), visto no cinema pelo Cinéfilo Preguiçoso, garante uma pausa redentora no frenesi irracional da quadra natalícia. Neste filme tranquilo e luminoso, rodado numa casa desenhada por Siza Vieira em Moledo (Caminha), Rita Azevedo Gomes adapta a única peça que Éric Rohmer escreveu para o teatro. Protagonizada por Pascal Greggory e Jessica Forde na encenação original de Rohmer, esta peça sobre sete encontros de um casal ao longo de um ano estreou em 1987, em pleno período das Comédias e Provérbios – no mesmo ano estrearam O Amigo da Minha Amiga (que faz parte desta série) e também Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle. É inegável que se trata de um texto distintivamente rohmeriano, centrado em duas personagens que negociam uma relação através das palavras, mas nem sempre dizendo toda a verdade. As duas personagens já foram um casal, mas, depois de terminarem a relação, continuam a encontrar-se por uma questão de “amizade” e para discutirem as novas aventuras sentimentais da protagonista. Curiosamente, Rita Azevedo Gomes, apesar de trabalhar com esta influência tão forte, não faz um filme rohmeriano. O ritmo de Rohmer é perturbado e transfigurado por dois elementos principais. Em primeiro lugar, a realizadora transforma a peça num filme dentro do filme: os confrontos verbais entre os protagonistas são pontuados por momentos em que os actores ensaiam ou conversam, a equipa técnica trabalha e a assistente de realização tenta organizar o realizador (interpretado pelo espanhol Ado Arrieta, realizador na vida real, a quem a Cinemateca dedicou uma retrospectiva em Junho), que, como uma espécie de figura divina incompreensível, dá umas instruções vagas e exige repetições constantes por mero capricho, entre algumas sequências mais oníricas. Esta componente cria um contraponto, algo misterioso e abstracto, à peça propriamente dita. Em segundo lugar, a interpretação e o desempenho dos actores são muito diferentes. Nos papéis principais do filme de Rita Azevedo Gomes, Rita Durão e Pierre Léon (também ele realizador, além de actor e crítico) parecem muito menos fúteis e imaturos do que as típicas personagens rohmerianas. Na encenação de Rohmer da sua própria peça (por ele mesmo registada em filme), Pascal Greggory é mais agressivo e ciumento e menos distanciado do que Pierre Léon; Jessica Forde parece ter bem menos densidade do que Rita Durão. O ritmo do filme de Rita Azevedo Gomes talvez seja mais mozartiano e, dir-se-ia até, mais bergmaniano do que rohmeriano: aliás, numa estante da casa, há um fotograma de Sarabanda (Ingmar Bergman, 2003), filme que é precisamente sobre um casal que se reencontra, destacando o momento em que Liv Ullmann e Erland Josephson se encaram, numa posição que Rita Durão e Pierre Léon replicam durante o filme. Uma das questões mais importantes da discussão entre os protagonistas de Rohmer é o ritmo. O protagonista diz várias vezes que duas pessoas só podem amar-se se gostarem da mesma música, porque a música tem uma dimensão física, relacionada com o ritmo dos corpos. Além disso, a possibilidade de reconciliação entre os dois protagonistas depende da resolução de um mal-entendido musical. Na medida em que consegue fazer um filme totalmente diferente daquele que Rohmer faria, fiel à peça original, mas com espaço para invenções formais, Rita Azevedo Gomes demonstra a importância do ritmo, dando assim uma resposta pessoal em forma de filme à questão com que as personagens se debatem.
O Cinéfilo Preguiçoso vai fazer uma pausa, mas voltará em 2023. Boas festas para todos.
Outros filmes de Rita Azevedo Gomes no Cinéfilo Preguiçoso: Frágil como o Mundo (2001); Correspondências (2016); A Portuguesa (2018).