9 de junho de 2024

Showing Up

Numa entrevista, Kelly Reichardt declarou que gosta de encarar cada filme como um novo desafio, sem preocupações de continuidade estilística ou temática com os anteriores, apesar de se manter fiel à sua equipa de colaboradores, com destaque para o argumentista Jon Raymond. Isto reflecte-se na sua filmografia, na qual seria difícil encontrar uma linha condutora ou temas dominantes. Uma das expressões que o Cinéfilo Preguiçoso usou em artigos sobre filmes anteriores de Reichardt foi “tom menor”. A recusa de pontos altos e da grandiloquência – provavelmente o traço mais distintivo desta cineasta – é mais evidente do que nunca em Showing Up (2022). A personagem principal, Lizzy (Michelle Williams), é uma escultora que prepara uma exposição, enquanto tem de lidar com uma miríade de problemas, alguns bastante comezinhos: o trabalho administrativo numa escola artística dirigida pela mãe, o bizarro casal que ocupa a casa do pai, a saúde mental do irmão, a falta de água quente e a saúde de um pombo que foi atacado pelo seu próprio gato. No meio das peripécias mais ou menos cómicas que estes problemas suscitam, o trabalho artístico de Lizzy é mostrado com uma discrição extraordinariamente bem conseguida. Os gestos de moldar, pintar e cozer as figuras de barro são intercalados com os gestos da vida quotidiana. Apesar da fluidez do trabalho de câmara e do argumento, nunca deixamos de sentir que a fronteira entre estes dois domínios existe e se mantém graças à força de vontade e ao autodomínio da protagonista. Showing Up está nos antípodas dos filmes que mostram os artistas como génios turbulentos que cortam as amarras que os ligam ao mundo e ficam à espera de que a inspiração os visite. O mundo está demasiado presente na vida de Lizzy e há demasiadas coisas a solicitarem os seus cuidados para que ela se possa dar a esse luxo. As estatuetas que cria nunca são filmadas de forma glamorosa, com a reverência devida a uma obra de arte: limitam-se a ocupar as porções de plano que lhe competem, entre os corpos e os movimentos daqueles que se aproximam delas. Há até uma que, por ter ficado demasiado tempo no forno, está queimada de um dos lados, mas não deixa por isso de integrar a exposição. Graças a essa materialidade, sugerida com tanto comedimento e desassombro, as peças adquirem um grande poder dramático nas cenas finais: à falta de manifestações de satisfação por parte de Lizzy, demasiado ocupada com os problemas da família, é a obra feita que exprime o sucesso do seu trabalho. Por se tratar de uma realizadora dada a recomeços, parece pouco razoável tentar descrever Showing Up como o culminar de um percurso, apesar de, provavelmente, ser o filme mais conseguido de Reichardt. Adivinha-se que a sua carreira futura continuará a registar passos em falso e momentos de excelência e que cada novo filme será como um território virgem que o espectador é convidado a explorar.
 
Outros filmes de Kelly Reichardt no Cinéfilo Preguiçoso: Certain Women (2016), First Cow (2019).