No documentário Uma Viagem pelo Cinema Francês (2016), que passou recentemente pelas salas portuguesas e está disponível tanto em DVD como nos videoclubes das operadoras de televisão, o realizador Bertrand Tavernier revisita as obras e pessoas que marcaram o seu percurso pessoal de jovem cinéfilo, crítico, assistente de realização e cineasta, focando-se essencialmente no período entre 1930 e 1970 e em personalidades como Jean Renoir, Jean Gabin e Jean-Pierre Melville. O narrador é o próprio Tavernier, ajudado por depoimentos de numerosos actores, realizadores e técnicos, e são abundantes os excertos de filmes que funcionam como ilustração das características e inclinações dos cineastas abordados. Uma Viagem pelo Cinema Francês pouco traz de novo do ponto de vista formal, mas possui mérito pela homenagem que presta a um período riquíssimo do cinema francês, que era, e continua a ser, mau grado as crises periódicas, um caso de pujança criativa e de sustentabilidade económica que pode ser considerado singular no contexto europeu. O olhar de Tavernier é o de um crítico: apesar da paixão evidente que o move, resiste à tentação de transformar o documentário numa elegia sentimental e mantém uma postura analítica e didáctica, que, contudo, evita o pedantismo. Além disso, consegue um bom equilíbrio entre a exploração do seu percurso pessoal e a representatividade histórica, apesar do destaque dado aos realizadores de quem foi mais próximo, em particular Melville e Claude Sautet. Este equilíbrio só é posto em causa quando Tavernier se permite derivas extracinematográficas, perfeitamente dispensáveis, sobre as posições políticas e as personalidades de Renoir e de Gabin. São ainda de louvar o destaque atribuído a realizadores caídos no esquecimento, como Edmond T. Gréville, e a aspectos normalmente menosprezados neste tipo de documentários, como a composição de música para o cinema e a conservação de filmes (a dada altura, Tavernier narra um episódio rocambolesco que envolve o resgate de filmes antigos que iam ser reciclados para o fabrico de pentes…) Sem dúvida, os fãs do cinema francês encontrarão neste documentário alguma informação interessante e invulgar não só sobre personalidades e filmes emblemáticos, mas também sobre figuras e obras mais obscuras, a descobrir ou redescobrir.
3 de setembro de 2017
30 de julho de 2017
A Quiet Passion
Antes das
férias, o Cinéfilo Preguiçoso termina o mês de Julho em grande, com o filme A Quiet Passion, de Terence Davies
(2016), visto em DVD, sobre a vida da poeta americana Emily Dickinson
(1830-1886). Não se trata bem de um biopic.
Davies não tem como objectivo principal a biografia propriamente dita, mas sim
retratar o pensamento e as ideias da escritora em face de um tempo em que nunca
consegue integrar-se. Para tal, Davies explora o contraste entre Dickinson e
outras figuras femininas – a mãe, a tia, a amiga, a irmã, a cunhada –, não
hesitando em colocar lado a lado personagens que na realidade nunca se
conheceram (facto que tem causado alguma celeuma desinteressante). Uma das
grandes surpresas e trunfos do filme é este contraste revelar uma Emily Dickinson
insatisfeita, descontente, infeliz, revoltada, irónica e insolente, ainda que
com muito sentido de humor. Esperaríamos antes a imagem tradicional da
escritora tímida e sossegada que se tornou conhecida por raramente sair de
casa. Em vez disso, temos uma figura muito semelhante a certas personagens das
irmãs Brontë – referência forte neste filme –, sempre sincera e aguerrida,
pensando livremente e dizendo o que lhe vai na alma, sem qualquer preocupação
com as conveniências. A dada altura, a irmã faz-lhe a seguinte repreensão: “Não
penses que és Jane Eyre!” Davies filma com enorme sobriedade e sem grandes
preocupações naturalistas, privilegiando os planos frontais. Um dos grandes
momentos do filme é o da sessão fotográfica da família em que assistimos aos
efeitos da passagem do tempo sobre as personagens fotografadas. Como em Paterson, os poemas ocupam
um lugar importante, mas, ao contrário do que se verifica no filme de Jarmusch,
em A Quiet Passion não há ligação
ilustrativa directa entre textos, acção e imagens. Em Paterson, a poesia emergia das rotinas do protagonista, no filme de
Terence Davies deriva claramente das aventuras mentais da escritora, muitas
vezes filmada a escrever a partir das três da manhã, para não sofrer
interrupções nem distracções. Se quisermos, por outras palavras, em Paterson a literatura é feita de vida; em A Quiet Passion a vida é feita de literatura. São de salientar ainda a omnipresença da música,
que nos remete para o sublime Distant
Voices, Still Lives (1988), primeira longa-metragem do realizador, e as
interpretações de Jennifer Ehle no papel de Lavinia, irmã de Emily, e de
Cynthia Nixon – esta verdadeiramente soberba – no papel principal. Ehle
tinha-se tornado conhecida graças ao papel de Elizabeth Bennet numa adaptação
televisiva de Pride and Prejudice
(1995); Nixon é sobejamente conhecida dos fãs da série Sex and the City.
O Cinéfilo Preguiçoso regressará em Setembro e deseja aos seus fiéis leitores umas boas férias.
O Cinéfilo Preguiçoso regressará em Setembro e deseja aos seus fiéis leitores umas boas férias.
23 de julho de 2017
American Honey
Andrea Arnold é uma realizadora inglesa com um percurso muito atípico: antes de se dedicar ao cinema distinguiu-se como actriz, apresentadora e bailarina em vários programas de televisão, alguns dos quais dirigidos ao público infantil. Assinou as primeiras curtas-metragens perto dos quarenta anos de idade, não tardando a chamar a atenção com filmes como Red Road (2006) e Fish Tank (2009), que lhe deram uma reputação sólida nos circuitos dos festivais e do cinema independente. American Honey, que o Cinéfilo Preguiçoso falhou quando estreou em sala, mas viu agora graças ao videoclube de uma operadora de telecomunicações, trouxe-lhe notoriedade acrescida e uma torrente de distinções, incluindo o prémio do júri do festival de Cannes de 2016. A acção centra-se na personagem de Star (Sasha Lane), uma adolescente que decide juntar-se a um grupo itinerante que vive em comunidade e que se dedica à venda de assinaturas de revistas, percorrendo os Estados Unidos da América numa carrinha e alojando-se em motéis. O filme mostra-se fiel a muitos dos códigos do road movie, tocando igualmente em alguns lugares-comuns sobre histórias de grupos de jovens um pouco selvagens (quem tiver lido, por exemplo, o romance The Girls, de Emma Cline, reconhecerá algumas situações e dinâmicas). Contudo, American Honey tem o mérito de inovar em vários aspectos que, embora possam ser considerados menores, o tornam menos previsível e mais interessante. É notável, por exemplo, a maneira como, no grupo de jovens retratado, anarquia e espontaneidade convivem com hierarquias, relações de poder e estratégias comerciais que reproduzem as estruturas do mundo laboral convencional. A atenção à fauna e às paisagens das localidades atravessadas introduz uma dimensão lírica que faz lembrar o Terrence Malick de Badlands (1973) e também a obra do fotógrafo americano Keith Carter. Alguns detalhes quase surrealistas, como o uivo que Jake (com quem Star se envolve romanticamente) simula para assinalar a sua presença, ou a intervenção inusitada de um urso, contribuem para que o filme seja mais do que uma longa sucessão de conflitos humanos e viagens pela América profunda. Por fim, a própria personagem de Star é um elemento decisivo para o sucesso do filme: a ingenuidade, o desejo de ser amada, a manha e o espírito empreendedor coexistem nela sem se misturarem, tornando imprevisível o seu comportamento. Apesar do final (que soa mais a incapacidade de resolver as tensões do argumento do que à intenção de deixar a narrativa em aberto) e da presença dispensável de Shia LaBeouf (com o seu cortejo de tiques do star-system, que era tudo aquilo de que este filme não precisava), American Honey é um filme que faz algo de novo e gratificante dentro de um registo já glosado até à exaustão no cinema independente.
16 de julho de 2017
Certain Women
Certain Women (2016), o filme mais recente de Kelly
Reichardt, está disponível nos videoclubes das operadoras de televisão sem ter
passado pelas salas de cinema. Tem três secções, baseadas em três contos da
escritora americana Maile Meloy (n. 1972). A acção situa-se sempre no Montana e
em cada secção aparece brevemente uma personagem de outra. Apesar de os papéis principais
serem assegurados por actrizes carismáticas – Laura Dern, Michelle Williams,
Kristen Stewart e a excelente, embora menos conhecida, Lily Gladstone –, o
filme presta atenção a personagens que à partida ninguém pensaria poderem
inspirar uma história. Deparamos com uma advogada a braços com um cliente problemático;
um casal que quer construir uma casa com autenticidade e tenta comprar umas
pedras de grés a um vizinho idoso; uma professora de direito escolar que tem de
fazer quatro horas de viagem para dar uma aula e a tratadora de cavalos num
rancho que, num impulso, decide assistir às suas aulas. A insignificância
aparente das personagens, o tom menor e o ritmo lento são traços distintivos do
cinema de Reichardt que permitem à realizadora dar a ver microacontecimentos e
micro-sentimentos em que mais ninguém repara. Este cinema, no entanto, exige do
espectador uma disponibilidade e generosidade que nem todos terão. A terceira
secção deste filme, incluindo os momentos poéticos do trabalho no rancho com os
animais, é sem dúvida, a mais interessante. O contraste das perspectivas de
duas protagonistas muito diferentes que só por acaso se encontram é profundo:
para a personagem de Kristen Stewart, as aulas que tem de dar são um trabalho
de que se quer livrar; na vida solitária e calma da personagem de Lily
Gladstone, as conversas com a professora no restaurante depois das aulas são um
momento quase mágico que não quer deixar terminar. A impressão global que o
filme transmite é a de uma grande coerência estética e acuidade psicológica,
mas também de alguma irregularidade no interesse que as histórias conseguem suscitar.
Depois do passo em falso que foi Night
Moves (2013), Certain Women
confirma Reichardt como uma realizadora a seguir com atenção, e de quem se
recomendam vivamente também Old Joy
(2006), com Bonnie Prince Billy, e Meek’s
Cutoff (2010).
9 de julho de 2017
A Senhora Oyu | O Intendente Sansho
O cinema Nimas continua a apresentar a retrospectiva de Kenji Mizoguchi e ainda bem, porque assim temos tempo para ver os filmes que queremos, sem saturação nem stress. Nesta semana o Cinéfilo Preguiçoso viu A Senhora Oyu (1951) e O Intendente Sansho (1954), que têm em comum um dos temas mais caros ao realizador japonês: o sacrifício, quase sempre protagonizado por uma personagem feminina, em prol da felicidade de outrem. Ambos os filmes são adaptações de obras literárias: um romance de Junichiro Tanizaki e um conto de Mori Ogai, respectivamente. As semelhanças, contudo, ficam-se por aí. O enredo de A Senhora Oyu gira em torno do casamento da personagem masculina principal, Shinnosuke, com Shizu, apesar de estar apaixonado pela irmã desta, Oyu, uma viúva forçada pelas convenções sociais a consagrar-se à educação do filho. O filme é um retrato íntimo de três personagens infelizes, cujos desejos são contrariados pela força dos costumes e pelos azares da cronologia: quando, devido à morte do filho, Oyu readquire a liberdade para contrair matrimónio, Shinnosuke está casado com Shizu, que sabe não ser amada mas que aceitou a união para permitir que Shinnosuke ficasse próximo da irmã. A câmara de Mizoguchi mostra-nos uma coreografia de corpos que esboçam aproximações, mas se forçam a manter as distâncias, tolhidos pelo dever e eternamente desfasados. O filme vale ainda pela personagem extraordinária de Oyu, uma figura de beleza intemporal que se mantém sempre digna na adversidade. O Intendente Sansho também tem um certo teor coreográfico, mas neste caso os corpos interagem de forma cruel e violenta, sempre em contexto de agressão, coacção e punição. O enredo, centrando-se em dois irmãos que são vendidos como escravos no Japão medieval, pode ser visto como uma representação da emergência da lei e da compaixão num mundo dominado pela prepotência. Duas notas finais sobre os elencos: destaque para Kinuyo Tanaka, que participa em ambos os filmes e entrou em mais de quinze obras de Mizoguchi, e também para Kyoko Kagawa, que desempenha o papel da irmã em O Intendente Sansho e que muitos cinéfilos recordarão de Tokyo Monogatari, de Ozu – era ela quem contracenava com Setsuko Hara no famoso diálogo «A vida não é decepcionante?»/ «É.» O ciclo Mizoguchi prossegue até 19 de Julho.
2 de julho de 2017
A Viagem de Chihiro | Lixo Extraordinário
Estamos
no Verão. Além de Paterson, não há
nada de apaixonante para ver nos cinemas. O Cinéfilo Preguiçoso recorre à colecção
de DVDs e ao que de interessante possa passar na televisão que entretanto lhe
tenha escapado. Em A Viagem de Chihiro,
uma animação do estúdio Ghibli com realização de Hayao Miyazaki (2001), vista
na RTP2, uma menina de dez anos e os pais vão mudar-se para uma cidade
diferente. Prestes a chegarem, encontram por acaso um misterioso túnel que vai
dar ao que parece ser um parque de diversões abandonado, onde estranhamente
encontram um restaurante com comida a que não conseguem resistir. Os prodígios
e aventuras que se seguem, com deuses, feiticeiros e espíritos, combinam
referências a Alice no País das
Maravilhas, Murakami, mitologia grega, cultura oriental e ecologia. Ainda
assim, este filme consegue não só surpreender, por meio das reviravoltas do
enredo, mas também encantar, graças à beleza e das imagens. É como darmos por
nós num sítio onde pensávamos nunca ter estado antes mas que parece
estranhamente familiar. A Viagem de
Chihiro recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2002 (ex aequo com Bloody Sunday, de Paul Greengrass), além do Óscar de Melhor Filme
de Animação de 2003. Mais recentemente, ouvimos falar deste filme por fazer
parte da (discutível) lista dos melhores filmes do século vinte um do New York Times. Por sua vez, o
documentário Lixo Extraordinário (Lucy
Walker, João Jardim, Karen Harley, 2010), visto em DVD, acompanha o projecto do artista
brasileiro Vik Muniz no Jardim Gramacho, um aterro que funcionou entre 1976 a
2012, tendo chegado a receber mais de sete mil toneladas diárias de resíduos
químicos e orgânicos. Este documentário tem interesse não tanto por desenvolver
uma reflexão digna de nota sobre o universo da arte moderna e sobre a
antropologia do lixo, dimensões muito incipientes no filme, mas sim, por um
lado, pela informação que fornece sobre este aterro e, por outro, pela participação
de sete catadores de material reciclável que lá trabalhavam. Estes tornam-se
também assunto da obra de Muniz, que os faz posar para composições que misturam
imagem fotográfica e materiais do aterro, posteriormente vendidas para apoiar a
associação de trabalhadores. Sem escamotear o horror das condições de trabalho
do local, o documentário trata sempre estas pessoas como seres humanos dignos e
iguais a todos nós.
25 de junho de 2017
O Sentido do Fim
Ver um filme baseado num livro de um autor estimado suscita inevitavelmente comparações que raramente são lisonjeiras para os responsáveis pelo filme. O Cinéfilo Preguiçoso nunca leu O Sentido do Fim, de Julian Barnes, mas admira o autor e alimentava expectativas quanto à adaptação realizada em 2017 por Ritesh Batra, cineasta indiano que obteve um sucesso colossal com a longa-metragem de estreia (The Lunchbox, 2013). O tema principal do enredo é a falibilidade da memória e a tendência para distorcer ou ocultar acontecimentos biográficos, de forma mais ou menos voluntária. A personagem principal, Tony Webster (Jim Broadbent), um londrino reformado e divorciado que se ocupa de uma pequena loja de máquinas Leica, força um reencontro com uma ex-namorada, Veronica, quando recebe um legado inesperado da mãe desta. A reaproximação com Veronica (interpretada por Charlotte Rampling, que ofusca tudo e todos quando entra em cena, como habitualmente) obriga-o a confrontar episódios dolorosos do seu passado. O filme tenta ao mesmo tempo gerir as revelações que vão sendo feitas sobre o passado das personagens (essencialmente mediante doses generosas de analepses), ilustrar as repercussões das investigações de Tony na sua vida actual (sobretudo nas relações com a ex-mulher, com a filha e com o neto recém-nascido) e encaminhar a narrativa para um final marcado pelo apaziguamento. O resultado é um filme competente, mas que se dispersa demasiado por estas diversas frentes, levando a que a caracterização das personagens e das relações entre elas seja bastante incipiente. O final, em particular, soa a falso: a reconciliação entre Tony, os seus próximos e o mundo em geral (nem falta uma chávena de café oferecida ao carteiro, que ele antes ignorava) não convence e revela uma tentativa de forçar algo parecido com um final feliz tradicional, como se confrontar o indizível fosse suficiente para apagar os traumas do passado e virar a página. Apesar da complexidade do argumento e de um punhado de boas interpretações, O Sentido do Fim é um filme dispensável.
18 de junho de 2017
O Conto dos Crisântemos Tardios
Felizmente, o
cinema Nimas continua a passar filmes de Mizoguchi. Esta semana o Cinéfilo
Preguiçoso viu O Conto dos Crisântemos
Tardios (1939), um filme que explora a ligação entre a arte e a vida, a
história individual e a tradição social e artística, a partir da longa
aprendizagem de um actor de teatro kabuki no final do século XIX. O argumento,
baseado num romance de Shofu Muramatsu, centra-se na personagem de Kikunosuke,
um jovem actor adoptado como herdeiro e futuro sucessor pelo actor mais
importante da época. Kikunosuke vê-se obrigado a abandonar a família e Tóquio quando
escolhe casar com Otoku, uma empregada humilde e também a única pessoa que é sincera
com ele sobre as suas capacidades dramáticas em vez de o bajular. O filme segue
os esforços do protagonista para se impor como actor sem a protecção do pai
adoptivo, mas sempre apoiado por Otoku, que tudo sacrifica pela carreira dele. O Conto dos Crisântemos Tardios tinha
tudo para ser um dramalhão insuportável, mas a dignidade das personagens e o
rigor com que Mizoguchi filma as situações mais angustiantes, situando sempre o
individual num pano de fundo colectivo extremamente complexo e diverso, equilibra
qualquer emoção mais exagerada. Particularmente interessantes são, por um lado,
todas as cenas nos bastidores labirínticos do teatro, as suas figuras nervosas
a correr de um lado para o outro, as trocas de palavras marcadas pela tensão
própria da representação, e, por outro, as cenas que caracterizam a relação dos
dois protagonistas, em espaços mais privados e sossegados, como a conversa ao
ar livre às duas da manhã em que aparece um vendedor de espanta-espíritos vindo
do nada, ou, mais tarde, a partilha de talhadas de melancia com sal. O ciclo
que o cinema Nimas tem apresentado centra-se em obras mais tardias de
Mizoguchi, essencialmente realizadas nos anos cinquenta. É de aplaudir a inclusão
deste filme anterior à Segunda Guerra Mundial, tão emocionalmente rico e subtil,
marcado por um brilhantismo formal impressionante – apesar de a qualidade da
cópia deixar a desejar.
11 de junho de 2017
Summertime
Nesta semana o Cinéfilo Preguiçoso viu o DVD de Summertime, filme de 1955 realizado por David Lean. Por comparação com as superproduções que se lhe seguiram e que trouxeram fama mundial a este cineasta (A Ponte do Rio Kwai, Lawrence da Arábia, Doutor Jivago), Summertime impressiona pela ligeireza formal e pela relativa simplicidade do enredo, baseado numa peça de sucesso (The Time of the Cuckoo, de Arthur Laurents). Jane Hudson (Katharine Hepburn), uma secretária do Ohio em visita a Veneza, envolve-se com Renato (Rossano Brazzi), um antiquário italiano que esconde inicialmente ser casado e que, quando a verdade vem ao de cima, critica Jane tanto por não aproveitar aquilo que a vida lhe oferece como por aspirar a um ideal inatingível. O filme distingue-se pela franqueza com que os protagonistas discutem aspectos sentimentais e pela frontalidade com que Lean nos mostra uma mulher e um homem em busca de amor e tão agudamente conscientes disso mesmo. Visualmente, Summertime parece uma apologia do Technicolor: Veneza é filmada em gloriosos tons de pastel e em enquadramentos que não fogem ao pitoresco (as gôndolas, a Praça de São Marcos e os canais são omnipresentes) e que podiam ser o resultado das filmagens que Jane, empunhando uma câmara, vai fazendo ao longo da sua estadia, como num filme dentro do filme que vai sendo abandonado à medida que a relação com Renato passa a absorver a sua atenção. É difícil não comparar este filme belo e tocante com Brief Encounter (1945), que, tendo em comum o tema do encontro sem futuro entre duas personagens sentimentalmente insatisfeitas, confirma que Lean se sentia tão à vontade com estes registos mais minimalistas como com os frescos históricos monumentais que lhe trouxeram visibilidade internacional e dois óscares de melhor realizador. Os rohmerianos também poderão encontrar alguns pontos em comum entre o percurso de Jane e o de Marie Rivière em O Raio Verde (1986), outra mulher habituada à solidão e ao sentimento de estar a mais, outra personagem entregue a deambulações estivais em busca de companhia e afecto.
4 de junho de 2017
Paterson
Devido
aos sucessivos adiamentos da data de estreia em Portugal de Paterson (Jim Jarmusch, 2016), o
Cinéfilo Preguiçoso já tinha comprado o DVD do filme há mais de um mês. Porém, por
se tratar de um dos seus realizadores preferidos, e com receio de ter
expectativas exageradas, só agora concretizou o visionamento. Afinal, apesar de
Paterson vir sendo descrito como
«grande filme», não corresponde a esse estereótipo. Em vez de um «grande filme»
temos, muito melhor, uma pequena maravilha. O filme segue a estrutura de uma semana do casal de protagonistas (Adam
Driver e Golshifteh Farahani) e do seu animal de estimação, o buldogue Marvin
(interpretado pela cadela Nellie, merecidamente premiada com o Palm Dog Award
no Festival de Cannes de 2016). O título do filme é simultaneamente 1) um
topónimo, que identifica a cidade do estado de New Jersey onde a acção decorre;
2) um antropónimo, que nomeia o protagonista; 3) e o título de um poema longo
de William Carlos Williams, poeta que também viveu nessa cidade. Como outros
filmes de Jarmusch, Paterson gera um
certo desconforto até nos habituarmos, por um lado, à estrutura formal
repetitiva e às rotinas das personagens, e, por outro, ao que de inesperado e
fantástico este quotidiano pode conter. Neste filme, um poeta não é um ser
excepcional que aparece nos jornais e na televisão irradiando literatura, mas
sim um condutor de autocarros cujos poemas nunca ninguém leu e que nem sequer
faz cópias do caderno onde os escreve. A famosa citação «no ideas but in
things», de William Carlos Williams, tem aqui todo o cabimento. A poesia está
imersa nas circunstâncias: o percurso entre casa e emprego, o intervalo do
almoço, a conversa com um colega de trabalho antes de o percurso diário ter
início, as palavras dos passageiros do autocarro, os pares de gémeos que vão
aparecendo, alguns encontros imprevistos com personagens que transmitem
informação importante, o passeio com o cão à noite, a cave onde o protagonista
escreve, rodeado dos livros dos poetas preferidos. Até as interrupções, quando
se escreve um poema, fazem parte da poesia. Já nos interrogámos muitas vezes,
perante outros filmes de Jarmusch, sobre o que poderão estar a pensar as suas personagens
mais enigmáticas. Em Paterson, as
palavras dos poemas (da autoria de Ron Padgett) que vão surgindo no ecrã e no
caderno do protagonista dão-nos uma resposta. A cena final é típica de
Jarmusch: profunda e tocante apesar do tom minimalista e banal. A personagem do
turista japonês poderia ter saído de Mystery
Train (1989), The Limits of Control
(2009), ou, em boa verdade, de qualquer outro filme de Jarmusch, um realizador com
uma obra repleta de rimas internas que, tal como este filme, se caracteriza por
uma discreta harmonia de temas e de meios.
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