12 de maio de 2019

Três Rostos


É uma enorme satisfação para qualquer cinéfilo ver uma sala de cinema – neste caso a sala 3 do São Jorge, que está longe de ser minúscula – completamente lotada para uma sessão com um filme de Jafar Panahi. Este realizador iraniano está há vários anos impedido de filmar e de sair do Irão, mas isto não o tem impedido de continuar em actividade. Nestas circunstâncias, cada filme, necessariamente rodado em condições artesanais e clandestinas, é ao mesmo tempo um desafio às probabilidades e um acto de resistência. Três Rostos (2018), que obteve o prémio de melhor argumento no Festival de Cannes de 2018 (ex aequo com Feliz Como Lázaro, de Alice Rohrwacher), tem como ponto de partida um vídeo, enviado para o telemóvel da actriz Behnaz Jafari (que desempenha o seu próprio papel), mostrando o suposto suicídio de uma jovem, frustrada pela oposição da família às suas aspirações de estudar cinema. O filme consiste, inicialmente, numa indagação sobre o paradeiro da jovem levada a cabo numa região remota do noroeste do Irão. A presença do realizador como actor e a referência a um eventual argumento preexistente sugerem uma ténue componente metaficcional que Panahi tem explorado abundantemente nos seus filmes anteriores, em particular Cortina Fechada (2013) e Táxi (2015). É notável a maneira como este misto de road movie e inquérito quase policial dá lugar, muito gradualmente, a uma imersão nos costumes das gentes da região, assumindo um carácter quase etnográfico que faz recordar O Vento Levar-nos-á (1999), de Abbas Kiarostami. As referências a Kiarostami (de quem Panahi foi assistente, em Através das Oliveiras, de 1994), são demasiado numerosas para não sugerirem uma homenagem explícita: a procura de uma pessoa desaparecida no meio da imensidão da província evoca E a Vida Continua (1992); a pedrada que o Pajero de Panahi recebe no pára-brisas lembra a cena final de Like Someone In Love (2012). É interessante constatar que Panahi, com a liberdade artística condicionada de forma tão grotesca, fez um filme que se volta para o interior da sociedade iraniana mas que funciona como mensagem política: em qualquer nação, a opressão que as cúpulas exercem reflecte e amplifica as pequenas tiranias, superstições e arbitrariedades enraizadas na sociedade. Contudo, através da história de três actrizes de gerações diferentes, obrigadas a lidar com os espartilhos e a incompreensão típicas da época, Panahi mostra as tradições e os preconceitos de maneira a equilibrar o espírito de denúncia com algum carinho e até empatia: o seu objectivo é fazer cinema, revelar o mundo de maneira a suscitar a reflexão. É essa a sua arma. Ele já mostrou de forma muito evidente que não pretende abdicar dela.