Na história do cinema há numerosos exemplos tanto de filmes protagonizados por pessoas conhecidas do grande público mas sem antecedentes de representação como de musicais atípicos protagonizados por actores sem dotes canoros. Medeia, de Pasolini (1969) e A Carta (1999), de Oliveira, em cujos elencos se destacam, respectivamente, Maria Callas e Pedro Abrunhosa, são exemplos dos primeiros; na segunda categoria, podemos citar Everyone Says I Love You (1996), de Woody Allen, ou Haut Bas Fragile (1995), de Rivette. Technoboss (2019), de João Nicolau, insere-se nesta dupla linhagem: a personagem principal é interpretada por Miguel Lobo Antunes, conhecido publicamente como programador cultural, que se estreia aqui a representar e a cantar. Parece ocioso, neste caso, discutir a qualidade do desempenho de acordo com os cânones tradicionais: diga-se apenas que Miguel Lobo Antunes consegue o feito de sustentar o filme do início ao fim com a sua presença, o seu corpo e a sua voz. A coexistência da personagem e da figura pública gera uma impressão de incongruência que atravessa o enredo, contribuindo para dar interesse a uma história que, na sua essência, é banal: um funcionário de uma empresa de segurança, apreensivo com a iminência da reforma e claramente ultrapassado pelos avanços da tecnologia, reencontra uma antiga amante e tenta conquistá-la. Não é um filme com grandes pretensões de profundidade, não diferindo nisto, aliás, da grande maioria dos musicais. Technoboss vale pela maneira como explora a comicidade da terminologia técnica, pelo humor físico e visual (fazendo, por vezes, lembrar Tati), pela diversidade de registos (muitas sequências evocam o espírito dos road movies) e pela construção de um universo estético próprio, marcado por inserções oníricas e bizarras que perturbam um registo predominantemente naturalista – algo que já era visível nos filmes anteriores do mesmo realizador, A Espada e a Rosa (2010) e John From (2015). Os momentos musicais nem sempre são conseguidos e por vezes levam longe de mais a tentativa de usar o amadorismo como estratégia. O espectador pode legitimamente interrogar-se se o filme não melhoraria com algum esforço adicional para aprofundar as motivações e os antecedentes das personagens, mas é inquestionável que Technoboss confirma a originalidade de João Nicolau e revela coerência estilística. Será interessante avaliar se a sua obra futura trará algum tipo de ruptura ou se, pelo contrário, revelará fidelidade a este registo.