5 de janeiro de 2020

The Souvenir


Para o Cinéfilo Preguiçoso, 2020 começa com um filme que há muito desejava ver. The Souvenir (2019), de Joanna Hogg, distingue-se dos filmes anteriores desta realizadora britânica por incorporar elementos autobiográficos de modo explícito. A personagem principal, Julie (Honor Swinton Byrne), enquanto tenta realizar um trabalho na escola de cinema que frequenta, envolve-se romanticamente com um homem mais velho (Tom Burke). O esforço de reconstituição de uma época (anos 80) e de uma etapa da vida traduz-se numa sucessão de momentos aparentemente desconexos mas reveladores da natureza subjectiva e fragmentária do exercício da memória. Apesar de The Souvenir ser um filme menos linear do que as obras anteriores de Hogg, mantém-se o estilo caracterizado pela exploração da dinâmica entre personagens dentro de planos longos e estáticos, pela importância de detalhes na banda sonora, nos diálogos ou nos cenários – o que exige uma enorme atenção do espectador, sempre recompensada –, bem como pelo aproveitamento dramático dos espaços. Este último aspecto, tão importante em Exhibition (2013) (cuja acção decorre quase integralmente numa casa que os protagonistas se preparam para vender), é explorado de forma mais discreta mas igualmente eficaz em The Souvenir: a disposição das divisões no apartamento de Knightsbridge que Julie partilha com o amante, incluindo pormenores que podem parecer triviais, como a proximidade entre a escadaria, a porta, o patamar e o elevador, propicia não só diálogos mas também várias cenas de acolhimento e despedida. A maior proeza de The Souvenir talvez seja despertar um interesse genuíno pela evolução psicológica e afectiva da personagem principal sem diluir a evidência de que se trata, na sua essência, de um poderoso filme sobre o processo de recordação filtrado pela experiência adquirida. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a criação e o cinema: o crescimento de Julie implica o abandono progressivo do seu projecto inicial de argumento (ingénuo e socialmente comprometido), em benefício de algo mais pessoal, que, apesar de ainda informe, contém o germe da carreira futura da realizadora. Na belíssima cena final, Julie abre as portas de um hangar, um edifício de um estaleiro naval ou um estúdio de cinema, antes de se fundir com um rectângulo de paisagem que, na medida em que também representa um ecrã, nos remete para outros momentos da história do cinema em que uma janela ou porta que se abrem são muito mais do que uma janela ou porta – por exemplo em Renoir (Une Partie de Campagne) ou em Ford (The Searchers). É como se Hogg se mostrasse a si própria, trinta e muitos anos mais nova, a dar o passo que a emancipa enquanto pessoa e enquanto criadora e que a torna capaz de, nos seus filmes, ao fazer da sua educação sentimental e intelectual matéria de cinema, seguir a recomendação que o amante lhe faz: mostrar a vida como ela é experienciada, apesar de ser impossível dar acesso directo às maquinações da mente ou do coração das personagens e das pessoas. Depois de ver todas as longas-metragens que Joanna Hogg realizou até ao momento, o Cinéfilo Preguiçoso está ansioso por ver a sequela deste filme, actualmente em pós-produção.

Outros filmes de Joanna Hogg no Cinéfilo Preguiçoso: Unrelated (2007), Archipelago (2010).