7 de março de 2021

Ana e Maurizio

 

Gravado na RTP2, Ana e Maurizio (2020) é um documentário realizado por Catarina Mourão. Ao contrário do muito recomendável A Toca do Lobo (2015), em que a realizadora explora as memórias associadas ao avô, o escritor Tomaz de Figueiredo, Ana e Maurizio centra-se em memórias de outra pessoa. O filme adopta o ponto de vista da pintora Ana Marchand e aborda a relação desta com um familiar que nunca conheceu, um tio de origem italiana que viveu uma existência muito curta, mas repleta de peripécias e viagens. Percebe-se que a artista teve uma relação conflituosa com a família mais chegada e que o percurso de aproximação a Maurizio, que envolveu refazer as viagens e usar as fotografias deste como material para as suas obras, foi um meio para construir uma identidade e suprir a falta de afinidades com os pais e a restante família. A parte mais interessante do filme é precisamente a exploração da ambiguidade entre a descoberta de um trajecto alheio e a definição de uma identidade própria e de um lugar no mundo, enquanto pessoa e enquanto artista. Esse equilíbrio delicado está patente em algumas colagens de Ana Marchand, que são mostradas no filme e que incorporam fotografias de Maurizio, nas quais é evidente a confluência dos olhares daquele que visitou os lugares pela primeira vez e daquela que visitou (e também fotografou) os mesmos lugares, décadas mais tarde, atenta às mudanças e semelhanças em relação ao olhar original. Em comparação com A Toca do Lobo, falta a este filme a sóbria intensidade emocional que Catarina Mourão foi capaz de imprimir à investigação do passado do próprio avô. A exploração do tema da reencarnação, glosado abundantemente em Ana e Maurizio, justifica-se atendendo ao interesse de Ana Marchand pelo budismo e à sugestão de que Maurizio teria reencarnado no corpo da sobrinha, mas este tópico nunca é aprofundado e as referências ao budismo raramente superam a dimensão meramente estética. As longas sequências filmadas na Índia pouco acrescentam ao documentário, contribuindo antes para a dispersão da atenção. Apesar de não lhe faltarem motivos de interesse, Ana e Maurizio não é o filme que poderia ter sido: falta-lhe a capacidade de construir uma narrativa ou de se articular em torno de uma ideia condutora forte, em vez de ceder à tentação do devaneio contemplativo, sobretudo na parte final.