Chinatown (1974), gravado na RTP1, foi o último filme de Roman Polanski realizado nos Estados Unidos. Inspirado pelas guerras de água na Califórnia no início do século XX, o argumento gira em torno de um detective privado (Jack Nicholson/Jake Gittes) que, investigando a morte de Hollis Mulwray, engenheiro-chefe da companhia das águas, se envolve com a viúva (Faye Dunaway/Evelyn Mulwray) e com o sogro deste (John Huston/Noah Cross). (Steven Soderbergh comentou que estes talvez tenham sido os melhores papéis de sempre tanto de Jack Nicholson como de Faye Dunaway. Foram ambos nomeados para o Óscar, mas perderam para Art Carney e Ellen Burstyn.) Recordando Vertigo, de Hitchcock, os primeiros trinta minutos de Chinatown são simplesmente magistrais. Contratado para seguir o engenheiro por uma mulher que se faz passar pela esposa deste e que alega suspeitar de um caso extraconjugal, Jake segue esta personagem por toda a parte, perplexo com os seus misteriosos percursos, sempre relacionados com a água. Na primeira vez que Evelyn, a verdadeira mulher de Hollis Mulwray, aparece no escritório do detective, tem a mesma expressão fantasmagórica da personagem de Kim Novak em Vertigo e veste um fato cinzento que lembra o dessa personagem. Nesta primeira secção de Chinatown, à semelhança do que se passa no filme de Hitchcock, as personagens movem-se numa espécie de dimensão mítica. Apesar de o argumento de Robert Towne ser muitas vezes considerado “quase perfeito”, depois da morte de Mulwray começa a perder-se um pouco nos meandros mais sociológicos e locais do enredo, deixando de ser tão cativante. Ainda assim, a dimensão mais abstracta continua presente e mantém o interesse do espectador. Esta dimensão relaciona-se com o título, que designa uma zona perigosa de Los Angeles que se caracterizaria pela total ausência de regras, mas que, apesar de referida inúmeras vezes, só no fim aparece. O próprio argumentista explicou que, na realidade, Chinatown é «um estado de espírito». Ao longo do filme, as referências constantes a essa zona criam uma atmosfera de ameaça, ansiedade e incerteza que tudo contagia, tornando-a indistinta de Los Angeles como um todo, assim explorada como deserto espiritual ou cidade profundamente corrupta, onde não há formas de vida que não sejam falsas, erradas ou cúmplices e onde todos são simultaneamente vítimas e culpados, porque mesmo as boas intenções têm más consequências. Quando estreou, Chinatown foi descrito como uma actualização do film noir, mas a marca de Polanski é inequívoca: encontramos a mesma presença omnipotente do mal e da perversidade em muitos outros filmes da sua obra. O género continua reconhecível, mas parece sempre desconfortável e estrangeiro. Como alguém já disse, o realizador nunca deixa que a história se conte a si própria; tudo é deliberado e pensado ao pormenor.
O Cinéfilo Preguiçoso fará uma pausa no próximo fim-de-semana, mas voltará depois da Páscoa.
Outros filmes de Roman Polanski no Cinéfilo Preguiçoso: A Partir de Uma História Verdadeira (2017); J'Accuse (2019).