O Cinéfilo Preguiçoso não ia à Cinemateca desde 16 de Fevereiro de 2020 – ou seja, noutra vida. Esta semana, no entanto, conseguiu ver Visita ou Memórias e Confissões (Manoel de Oliveira, 1982) na sala M. Félix Ribeiro! Mesmo em relação ao filme, é caso para exclamar: «Finalmente!» Foi realizado em 1982, mas Oliveira não quis que fosse visto antes da sua morte (em 2015), e o Cinéfilo Preguiçoso só agora teve oportunidade de assistir em sala a uma das poucas sessões em que tem sido projectado. Oliveira realizou Visita ou Memórias e Confissões quando, para pagar dívidas e poder continuar a filmar, teve de vender a casa que ele próprio mandara construir no Porto e em que tinha vivido com a família durante cerca de quarenta anos. Neste filme temos várias dimensões: o relato (um texto de Agustina Bessa-Luís) de dois visitantes imaginários (interpretados por Teresa Madruga e Diogo Dória, de quem só ouvimos as vozes) vagueando pela casa e reagindo com estranheza ao espaço; a narração de alguns episódios da vida do realizador pelo próprio, enquanto espírito ou fantasma da casa, sem preocupações de linearidade e coesão biográfica e omitindo até determinados lugares-comuns (como o desporto, as corridas de carro, etc.) sobre o assunto; alguns comentários metacinematográficos e supostamente histórico-filosóficos do realizador sobre os temas principais da sua obra; e uma breve aparição, igualmente fantasmagórica, de Maria Isabel, mulher do realizador, enunciando algumas palavras (provavelmente ditadas por Oliveira) no jardim, rodeada de dálias. Há também uma incursão a uma quinta no Douro onde Oliveira passou várias temporadas e onde foi visitado por André Bazin e José Régio, entre outros. Os momentos mais belos do filme são aqueles em que se mostra o espaço da casa em articulação com as palavras de Agustina, bem como o contraste que depois se estabelece entre estes e o discurso de Oliveira, despedindo-se desse lugar e de uma parte importante da sua vida. Os menos conseguidos e mais datados são as reflexões do realizador sobre a sua própria obra e sobre tópicos como Deus, a mulher e a pureza (que geraram até algum riso na sala): se necessário fosse, demonstrariam que, no cinema, a obra é sempre mais importante do que as palavras, os programas e as intenções. Não se pode propriamente dizer que ver Visita ou Memórias e Confissões seja essencial para compreender a obra do realizador (não inclui revelações extraordinárias), mas, devido à estranheza, à intensidade e ao sofrimento não verbalizado daquele momento na vida de Oliveira, é um filme muito invulgar. A estranheza é reforçada não só pelos comentários das personagens de Agustina, mas também pelo facto de nós, enquanto espectadores do futuro, sabermos mais sobre Oliveira do que ele próprio sabia naquela altura. Durante o filme, o realizador lembra que tem 73 anos e que viveu a melhor parte da sua vida naquela casa, sugerindo que começa a fazer ali uma espécie de preparação para a morte (embora fale daquele que ele pensava vir a ser o seu próximo projecto, Non, ou a Vã Glória de Mandar, que só seria realizado em 1990). Nós, no entanto, sabemos que Oliveira viverá até aos 106 anos e ainda tem pela frente tanto a consagração internacional como alguns dos melhores filmes da sua obra. Dir-se-ia, aliás, que o próprio epílogo do filme, na medida em que se transfere da casa para um estúdio de cinema, como se este fosse afinal a verdadeira casa de Oliveira, sabe mais do que o próprio realizador, antecipando o que virá a seguir. Por isso, de certo modo, Visita ou Memórias e Confissões é um filme não só sobre uma vida mas também sobre um destino.