É instrutivo comparar O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020), visto esta semana depois de ter sido gravado num canal de televisão, com Os Maias (2014). Ambos se baseiam em romances muito conhecidos de autores que fazem parte do cânone da literatura portuguesa e ambos são realizados por João Botelho, que aliás tem sido pródigo em adaptações literárias de clássicos e modernos, de Dickens e Garrett a Agustina Bessa-Luís, e que já abordara o universo pessoano em Conversa Acabada (1981) e Filme do Desassossego (2010). Em Os Maias, o realizador conseguiu produzir um objecto cinematográfico interessante sem distorcer ou fugir ao conteúdo do livro, graças a uma série de opções inteligentes na escolha do elenco, nos cenários e nos diálogos, entre outros elementos. O desafio de transpor para o ecrã o romance de Saramago era, à partida, potencialmente mais árduo, pelo facto de o livro se centrar num dos heterónimos de Pessoa, um autor estudado e analisado até à exaustão. Tentar respeitar a complexidade deste autor, do seu universo essencialmente mental e conceptual, e da questão dos heterónimos, sem deixar de ser fiel à ideia de Saramago, que consiste em imaginar que Reis sobreviveu ao seu criador e se passeia por uma Lisboa que assiste à consolidação do Estado Novo e à aproximação da guerra na Europa, é uma aposta muito arriscada, que só a espaços sentimos ter sido conseguida. O filme mostra quase exclusivamente Reis em diálogo com o próprio Pessoa, aparição proveniente do mundo dos mortos, e duas personagens femininas: a criada de hotel Lídia, com quem se envolve romanticamente, e Marcenda, uma jovem que se sente atraída por ele, mas hesita em dar o passo seguinte. Este formato, assente predominantemente em diálogos entre duas personagens, acaba por se tornar repetitivo. As opções de atribuir o papel de Reis a um actor brasileiro pouco conhecido dos cinéfilos portugueses (Chico Díaz) e de mostrar um Pessoa envelhecido e distante da aparência mais conhecida do poeta (Luís Lima Barreto) compreendem-se enquanto tentativa de suscitar alguma estranheza no espectador e de evitar o efeito ilustrativo, mas não são totalmente convincentes, o mesmo se aplicando aos desempenhos de Catarina Wallenstein e Victoria Guerra, que parecem pouco à vontade na pele das suas personagens. Algumas tiradas de Pessoa, no limite do brejeiro, também soam a falso. Percebe-se bem que o Pessoa que temos neste filme nos chega via Saramago, mas há uma ênfase excessiva nos comentários ou aforismos mais próximos do senso comum do romance do Prémio Nobel. Além disso, Ricardo Reis parece mais mulherengo no filme do que no romance, onde o seu interesse por mulheres é mais abstracto e literário, e esta diferença gera uma personagem pouco credível. É claro o esforço de João Botelho para criar uma obra cinematograficamente válida que não seja uma mera extensão do livro, por exemplo por meio da fotografia (um preto-e-branco extremamente contrastado) e pela maneira como Lisboa é filmada, com interiores e exteriores a sucederem-se sem que alguma vez se dissipe uma impressão intensa de claustrofobia. No entanto, O Ano da Morte de Ricardo Reis, embora tenha ideias interessantes e seja plenamente coerente com a restante filmografia do realizador, deixa o espectador a pensar que desta vez a transposição para o cinema do universo pessoano não funcionou bem.