28 de novembro de 2021

Roda da Fortuna e da Fantasia

Ainda no LEFFEST, o Cinéfilo Preguiçoso viu Roda da Fortuna e da Fantasia (Ryusuke Hamaguchi, 2021), premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano. Uma das razões pelas quais este filme é interessante é o facto de, explorando claramente influências e modelos facilmente identificáveis, Hamaguchi ter criado um filme pessoal em que aborda as preocupações que distinguem a sua obra já relativamente extensa, produzindo momentos verdadeiramente surpreendentes devido a reviravoltas inesperadas. Talvez as influências mais marcantes deste filme sejam Éric Rohmer e Hong Sang-Soo, dois realizadores que, tal como Hamaguchi, prestam atenção às relações amorosas, sobretudo entre jovens. Enquanto Éric Rohmer cultiva uma certa leveza (completamente ilusória), Hong Sang-Soo é mais tortuoso, implacável e até um pouco sardónico com as suas personagens. Hamaguchi guarda um pouco da leveza de Rohmer e um pouco do carácter implacável de Hong Sang-Soo, mas parecendo sempre compreender os seus protagonistas, independentemente dos erros que cometam. Um dos temas que têm marcado a sua obra é a performatividade – isto é, o modo como as personagens expressam ou chegam a uma certa verdade através da ficção, quando representam não só em exercícios teatrais mas também na vida. Roda da Fortuna e da Fantasia é fiel a este tema, uma vez que se divide em três secções com histórias diferentes, mas em que todos os protagonistas a dada altura representam um papel. A primeira secção – Magia (ou Algo Menos Reconfortante) – talvez seja a mais próxima de Asako I & II (2018), na medida em que, como o próprio Hamaguchi salientou numa entrevista, nos confronta com personagens jovens que tentam ser honestas em relação aos próprios desejos, embora isso por vezes as leve a cometer erros. No início, deparamos com a situação convencional de duas amigas que trocam confidências amorosas, mas os lugares-comuns explorados nesta conversa têm mais dimensões do que parece. Na segunda secção – Porta Escancarada –, a situação convencional é a de uma aluna que tenta seduzir um professor, lendo-lhe um excerto supostamente erótico de um livro escrito por ele. O mais interessante aqui é a circunstância de a aluna conseguir interessar o professor, mas não do modo como esperava. Por sua vez, ironicamente, apesar de as personagens defenderem a sua própria autenticidade, esta reviravolta invulgar desencadeia um desenlace banal, que também surpreende. Na terceira secção – Outra Vez –, talvez a mais lírica das três, decorrendo num estranho mundo em que as comunicações digitais foram abolidas por causa de um vírus informático, inicialmente tudo indica que assistimos ao reencontro de duas colegas de escola vinte anos depois de se separarem, mas também aqui temos uma surpresa. Basta dizer que, neste episódio em particular, o facto de as protagonistas assumirem deliberadamente e em concordância mútua diferentes personagens permite-lhes reassimilarem e reintegrarem o passado. A localização do princípio e do fim deste episódio numa estação de comboio é uma reapropriação de um espaço típico do melodrama, mas sem convocar a tragédia. A atenção que Hamaguchi presta à ambiguidade de determinadas situações quotidianas ou convencionais chama muitas vezes a atenção para momentos dolorosos do passado ou do presente, mas a ausência da orientação melodramática torna os filmes mais intrigantes. Por todos estes motivos, Roda da Fortuna e da Fantasia é um filme que dificilmente desiludirá os seguidores deste realizador japonês mas que tem potencial para apelar a um público mais vasto, eventualmente reticente em relação às explorações formais de Happy Hour (2015) e Drive My Car (2021).

21 de novembro de 2021

Drive My Car

O Cinéfilo Preguiçoso quis aproveitar o ciclo dedicado a Ryusuke Hamaguchi no LEFFEST para ver mais filmes deste realizador japonês. Drive My Car (2021), a sua longa-metragem mais recente, baseia-se num conto de Haruki Murakami e tem como personagem principal Yusuke, um dramaturgo cuja mulher morre subitamente. O filme tem como linha condutora a relação de Yusuke com o seu carro, que funciona não só como meio de deslocação, mas também como instrumento de trabalho: é enquanto conduz que estuda as deixas das peças em que está a trabalhar, gravadas em cassete pela sua mulher, cuja voz, deste modo, continua a ouvir regularmente mesmo depois de ela ter morrido. Durante uma estadia em Hiroxima, onde prepara uma encenação multilingue de O Tio Vânia, Yusuke vê-se obrigado, por questões relacionadas com o seguro do teatro em que está a trabalhar, a deixar o seu carro ser conduzido por uma jovem motorista, com quem vai aos poucos criando intimidade. Esta cedência a contragosto funciona como metáfora da incapacidade, por parte de Yusuke, de abdicar do controlo das suas emoções e de se reconciliar com a memória da mulher e com a angústia que sente por nunca terem conseguido conversar sobre a sua relação, abalada pela morte já distante no tempo de uma filha pequena, e depois por diversas escapadelas da mulher, que Yusuke finge ignorar. Aliás, este é provavelmente o problema principal de Drive My Car: a abundância de situações e episódios que parecem descrever metaforicamente os sentimentos e relações das personagens. Isso é notório nas longas cenas de ensaio e representação da peça: o convite para que o espectador encare o texto de Tchékhov como um comentário ao enredo do filme é demasiado óbvio. (Compare-se com L'Amour Fou, filme de Jacques Rivette realizado em 1969, onde o texto de Racine ensaiado pelas personagens é apresentado de forma neutra e documental, realçando assim a intensidade dramática das vidas dos actores fora do palco.) O final de Drive My Car é ambíguo, permitindo diversas interpretações, algumas das quais talvez excessivamente sentimentais. Em resumo, apesar de confirmar algumas virtudes de Hamaguchi, nomeadamente a capacidade tanto de encenar enredos complexos protagonizados por personagens ricas como de explorar o tempo da narrativa de forma criativa e ousada, Drive My Car é menos satisfatório do que Happy Hour (2015), onde estas características não eram diluídas por tanto sentimentalismo e abundância de digressões psicológicas. Esperamos voltar a falar de Hamaguchi muito em breve.
 
Outros filmes de Ryusuke Hamaguchi no Cinéfilo Preguiçoso: Happy Hour (2015), Asako I & II (2018).

14 de novembro de 2021

Crónicas de França

Cá temos finalmente o novo filme de Wes Anderson! Não vale a pena vermos o cinema deste realizador com as expectativas com que vemos outros filmes: para o melhor e para o pior, Wes Anderson criou regras e princípios só seus, nunca nos deixando esquecer que o cinema também pode ser um conjunto de imagens e sons manipulados com um perfeccionismo impressionante. Crónicas de França (2021) divide-se nas diferentes secções de uma revista semelhante à New Yorker, com personagens parcialmente inspiradas por pessoas que trabalharam nessa publicação, como os editores Harold Ross e William Shawn, os escritores Mavis Gallant e James Baldwin, ou o cartoonista e escritor James Thurber. O facto de esta revista se sediar em França, na cidade ficcional de Ennui-sur-Blasé, permite ao realizador homenagear a cultura francesa – não exactamente como ela é, mas filtrada não só pelas referências visuais que Anderson privilegia mas também pela cultura americana e pelos lugares-comuns que esta engendrou. Narrados pelos autores dos textos destas secções, os diferentes episódios incluem: uma homenagem ao papel de coordenador de revista (interpretado por Bill Murray); a descrição pitoresca de uma cidade francesa por um jornalista de bicicleta (Owen Wilson); uma sátira ao mundo da arte e dos coleccionadores; um pastiche da Nouvelle Vague e da cultura de Maio de 1968; e um episódio vagamente relacionado com culinária, protagonizado pelo excelente Jeffrey Wright, muito próximo de James Baldwin. Só no último episódio encontramos em todo o seu esplendor o perfeccionismo quase maníaco que caracteriza a obra de Wes Anderson. Alguns dos outros, sobretudo a secção com Timothée Chalamet, em que Frances McDormand parece representar uma personagem diferente e bastante mais rígida daquela que lhe é atribuída, têm problemas de ritmo, principalmente quando alternam entre a narração e a acção. Por outro lado, a personagem do coordenador da revista percorre o filme, unificando-o com os seus comentários editoriais, entre os quais se destacam as recomendações: «Nada de chorar» e «Independentemente de como escreveres, faz como se quisesses escrever assim de propósito», debitadas com o laconismo sisudo típico do inigualável Bill Murray. Depois do perfeccionismo, talvez a característica mais importante do cinema de Anderson seja a noção de família, que neste filme está bem patente a partir desta personagem e do modo como coordena a sua equipa. Deste modo, Crónicas de França também é um filme sobre o passado – o passado das revistas, de uma certa noção de família cultural actualmente em desintegração e também de uma convivência assente em coisas e experiências concretas e materializadas que provavelmente não voltaremos a ter. O próprio filme funciona, assim, como um museu de objectos de valor, reunidos por um coleccionador com um olhar capaz de os transfigurar numa obra pessoal. Não é o filme mais cativante de Wes Anderson, mas continua a fazer o que o melhor cinema deste realizador faz: recuperar do passado aquilo de que ainda precisamos para continuarmos a viver no presente, apesar de algumas perdas irreparáveis.

7 de novembro de 2021

Doze Homens em Fúria

A primeira longa-metragem para cinema de Sidney Lumet, Doze Homens em Fúria (1957), gravada num canal de televisão e vista esta semana, trata temas que este realizador viria a abordar com frequência na sua longa carreira, em particular os efeitos do individualismo na sociedade e a maneira como o funcionamento desta é influenciado pela instabilidade da natureza humana. Com excepção de algumas curtas cenas iniciais e de um brevíssimo epílogo, todo o filme decorre numa sala onde está reunido o júri de um caso de homicídio. O argumento centra-se na exposição de argumentos que, mais do que a inocência ou culpa do réu, se relacionam com o conceito de dúvida razoável que é uma das pedras basilares do sistema judicial norte-americano. Um dos jurados, interpretado por Henry Fonda, que no início é o único a opor-se ao veredicto de culpado, vai suscitando nos colegas essa dúvida razoável, ao questionar de forma sistemática as provas e testemunhas apresentadas pela acusação durante o julgamento. Este jurado, aliás, funciona como um advogado de defesa a posteriori, evocando inevitavelmente o papel de Fonda em Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford, em que também desmonta os argumentos da acusação num caso de homicídio. Fonda é a escolha natural para este papel, pela mistura de rectidão moral e senso comum que costuma transmitir às suas personagens. Neste caso, a escolha foi feita pelo próprio, uma vez que ele co-produziu o filme (a única vez em que Fonda assumiu o papel de produtor em toda a carreira), a meias com Reginald Rose, autor do guião previamente filmado para a televisão, em 1954. O resto do elenco é equilibrado e competente, apesar de algum overacting ocasional. Doze Homens em Fúria foi uma estreia muito auspiciosa para Lumet e merece a reputação que tem: consegue ser ao mesmo tempo pedagógico e dramaticamente intenso, abordando conceitos abstractos sobre o sistema judicial sem perder a ligação com as preocupações, fraquezas e preconceitos das personagens. Apesar de não ser um filme com cunho autoral vincado, destaquemos três pormenores de realização: o magnífico plano inicial, que, num movimento sucessivamente ascendente e descendente, nos mostra a imensidão do palácio de Justiça e a azáfama dos cidadãos anónimos; o único, breve e inesquecível plano do rosto do réu; a transição subtil dos planos de conjunto para os close-ups, à medida que a obstinação e os preconceitos dos indivíduos ganham preponderância sobre a dinâmica colectiva. Para Lumet, Doze Homens em Fúria marcou o início de duas parcerias importantes: com o actor Jack Warden, que também entraria, por exemplo, em O Veredicto (1982), e com o director de fotografia Boris Kaufman, irmão de Dziga Vertov e que colaborara em todos os filmes de Jean Vigo antes de emigrar para a América. É espantoso que tenha sido o mesmo homem a captar as imagens carregadas de lirismo e sensualidade de L'Atalante (1934) e, quase um quarto de século mais tarde, as de Doze Homens em Fúria, com o seu realismo áspero e claustrofóbico. A história do cinema está cheia destes percursos cruzados, errâncias e acasos de que às vezes resultam obras fascinantes.
 
Outros filmes de Sidney Lumet no Cinéfilo Preguiçoso: Network (1976), O Veredicto (1982).