Esta
semana, no ciclo da Cinemateca dedicado ao melodrama, passaram dois filmes raramente
exibidos em sala de dois realizadores muito apreciados pelo Cinéfilo
Preguiçoso: Max Ophüls e Frank Borzage. Uma das características mais
interessantes dos melhores melodramas cinematográficos é não propriamente a
desmesura dos sentimentos representados, mas sim a sofisticação e o requinte
com que estes são encenados, suscitando no espectador uma certa incredulidade perante
a coragem com que se desafia os limites do «bom gosto» por meio de todos os
exageros imagináveis – sem o filme se desequilibrar. Um bom exemplo é a cena do
funeral de Annie Johnson no filme Imitação da Vida de Douglas Sirk
(1959), uma sequência que deixa o espectador completamente atordoado com a saturação
de cores, sons, emoções e movimentos, sem perceber como esta não causa algum
distanciamento céptico. Baseado num conto de Borden Chase sobre a relação entre
um mestre de piano e uma discípula tão talentosa que o ultrapassa, o filme I’ve
Always Loved You, de Frank Borzage (1948), aposta nesta saturação sensorial
e emotiva, num contexto luxuoso e requintado. Depois de um espectáculo em que a
discípula toca o segundo concerto para piano de Rachmaninoff, o mestre decide
afastar-se dela, com a consequência de ambos ficarem bloqueados do ponto de vista
criativo durante vários anos, até se reencontrarem. Apesar de a intriga avançar
com um ritmo relativamente lento, acompanhando o casamento da protagonista e o
interesse da filha desta por piano, os últimos minutos do filme são vertiginosos.
A rapidez e o carácter inesperado dos acontecimentos que se desenrolam no mesmo
palco do Carnegie Hall onde antes teve lugar o confronto de talentos entre
mestre e discípula faz com que o espectador duvide dos próprios olhos e da sua
capacidade de compreensão do que está a acontecer. O filme de Max Ophüls foi Yoshiwara
(1937), sobre um triângulo amoroso em Tóquio, entre um oficial russo envolvido
numa intriga de espionagem, uma mulher que se vê obrigada a trabalhar num
bordel de luxo do bairro de prostituição para saldar uma dívida de família e um
condutor de riquexó com talento para o desenho. Nem a intriga nem as
personagens são dotadas da mesma sofisticação psicológica e narrativa dos
melhores filmes de Ophüls. A sofisticação expressa-se sobretudo nos
movimentos de câmara e nos cenários: o bordel, um jardim cheio de sombras e
fumos e uma estranha capela russa. Uma das sequências mais comentadas do filme
(e frequentemente comparada com uma cena famosa de Carta de Uma Desconhecida,
filme realizado por Ophüls em 1948) é aquela em que o oficial russo e o
protagonista encenam eles próprios um futuro impossível em que simulam jantar,
viajar de trenó através da neve e assistir a uma ópera. Yoshiwara pode
ser visto como um filme sobre a encenação. Podemos dizer o mesmo não só sobre Sans Lendemain (1939), onde a personagem de Edwige Feuillère engana o ex-amante
com um cenário opulento para esconder a sua situação, mas também sobre outros
filmes de Ophüls: recorde-se a máscara do velho galante em Le Plaisir
(1952) e, naturalmente, Lola Montès (1959), onde a intenção de iludir um
público com uma versão distorcida da realidade é elevada a um expoente supremo.
30 de junho de 2019
23 de junho de 2019
Os Mortos Não Morrem
É conhecida a inclinação de Jim Jarmusch para revisitar subgéneros cinematográficos, abordando-os com um misto de distanciamento e afecto cinéfilo. Foi assim, por exemplo, em Ghost Dog (1999) e em Only Lovers Left Alive (2013), que recorrem, respectivamente, a atmosferas e convenções dos filmes de artes marciais/máfia e de vampiros, mas onde o cunho pessoal do realizador é evidente. Em Os Mortos Não Morrem (2019), essa tendência volta a manifestar-se. O enredo decorre numa pequena cidade norte-americana onde uma sucessão de fenómenos estranhos que parecem associados ao fim do mundo culmina numa invasão de zombies. As personagens, tipicamente jarmuschianas (um pouco perdidas e ultrapassadas pelos acontecimentos, lacónicas e passivas), fazem o que podem para enfrentar os mortos-vivos, com as armas que têm à mão e alguns ensinamentos provenientes da cultura popular (“Matar a cabeça é a única maneira de aniquilar um zombie”). O filme resume-se a pouco mais do que uma sucessão de encontros sanguinolentos entre os cidadãos e as criaturas ressuscitadas. O elenco é vasto – e esse é um dos problemas principais de Os Mortos Não Morrem, que por vezes parece um repositório de amigalhaços de Jarmusch, cada um evocando o filme ou os filmes deste realizador em que participou e impondo um tom de piada privada que se torna irritante. Devemos, sem dúvida, estar gratos por ver no ecrã actores do calibre de Tilda Swinton, Bill Murray e Adam Driver, mas convém que o seu talento seja devidamente aproveitado, o que está longe de ser o caso aqui – e eis o segundo, e principal, problema do filme: as personagens são frouxas e caricaturais, o que contribui para que raramente se escape à superficialidade e à inconsequência. As tentativas de injectar alguma crítica social ou política, com referências ao fracking e ao consumismo, são desgarradas e carentes de convicção. (Compare-se com Nós: apesar das reservas que o Cinéfilo Preguiçoso exprimiu, trata-se de um filme que recorre ao sobrenatural e às convenções de um género para fazer uma crítica social poderosa.) Fica-se com a impressão de que Jarmusch achou que a simples intenção de juntar um filme de zombies ao seu portefólio e a presença de colaboradores talentosos chegaria para fazer um bom filme, mas convém que haja pelo menos um esboço de argumento. No passado, este realizador propôs-nos obras esparsas e com tendência para a deriva narrativa, como Os Limites do Controlo (2009) ou Dead Man (1995), mas estes filmes tinham uma coerência estética e conceptual de que não se encontra vestígios em Os Mortos Não Morrem. O Cinéfilo Preguiçoso espera que Os Mortos Não Morrem seja apenas um efeito de ressaca depois do sublime Paterson (2016) e que a este divertimento pouco conseguido se siga um filme mais consistente e estimulante na filmografia de Jarmusch.
16 de junho de 2019
Os Olhos de Orson Welles
Esta semana, no Cinema Ideal, o Cinéfilo
Preguiçoso viu Os Olhos de Orson Welles (2018), um documentário de Mark
Cousins, já nosso conhecido enquanto autor da excelente série A História do
Cinema: Uma Odisseia (2011), em quinze episódios. Cousins traça um retrato diferente dos
filmes e percursos de Orson Welles a partir dos desenhos e pinturas que este
fazia incansavelmente, registando ideias de cenografia, storyboards de
filmes, paisagens reais ou imaginárias e retratos de pessoas de onde sobressai o
seu interesse por rostos e expressões. De acordo com esta perspectiva, tal como
uma abelha não pode fazer senão mel, também Welles não podia produzir senão
imagens. Esta característica, aliás, parece aplicar-se ao próprio Mark Cousins.
O traço distintivo deste filme é pensar com imagens, no que é verdadeiramente
um ensaio cinematográfico que só a enorme cultura visual e a perspectiva
apaixonada de Cousins tornam possível. O tom é assumidamente pessoal, de um fã,
mas sem cultivar as observações cansativamente heróicas ou épicas que Welles
costuma inspirar, sobretudo quando se toma como ponto de partida a sua
biografia, as suas ambições vagamente megalomaníacas e as desventuras que
enfrentou no relacionamento com os estúdios. Alguns destes episódios são
referidos, principalmente em conversa com uma das filhas de Welles, mas nunca
assumem preponderância. Citizen Kane não é a obra mais destacada, ao
contrário do que costuma acontecer, dando assim espaço para observações
interessantes sobre pormenores de filmes como O Processo (1962), Macbeth
(1948), A Dama de Xangai (1947) e A Sede do Mal (1958). O filme
começa em Nova Iorque, visitando outros espaços por onde o realizador foi
passando ao longo da vida, com Cousins a interpelar directamente Welles (em
forma epistolar, um estratagema muito estafado mas que resulta bem neste caso),
explorando as diferenças entre o passado e o presente destes lugares e
salientando que Welles de algum modo antecipou as tentações totalitárias da
nossa época. Os Olhos de Orson Welles é cativante não só para fãs do
homenageado, mas também para pessoas que se interessam por imagens, mesmo que já
estejam cansadas das abordagens tradicionais ao cinema deste realizador. Só a
última secção do filme, em que Cousins imagina que Welles lhe responde por
carta, exaspera um pouco, até porque o filme já vai longo e até esse ponto
conseguiu equilibrar bem a paixão e a análise, em vez de se entregar ao
exagero. É pena que Cousins tenha cedido à tentação deste twist, tentando
fechar o filme com conclusões supostamente originais sobre o modus operandi
do realizador. O valor de Os Olhos de Orson Welles deriva da abordagem praticada
ao longo de quase duas horas: analítica e rigorosa, mas deixando espaço para a
admiração e para o fervor cinéfilo.
9 de junho de 2019
Poesia
Na
esteira da boa impressão deixada por Em Chamas (2018), o Cinéfilo
Preguiçoso decidiu ver Poesia (2010), o filme anterior do realizador sul-coreano
Lee Chang-Dong, recuperado oportunamente numa sessão de fim-de-semana do cinema
Monumental. Poesia é daqueles filmes em que paira permanentemente o
risco do apelo ao sentimentalismo – neste caso, totalmente superado. A
personagem principal, Mi-ja, é uma senhora que depende de um subsídio e de um
pequeno emprego como cuidadora para sobreviver e sustentar o neto adolescente.
Este vê-se envolvido num caso sórdido de violação colectiva seguida de suicídio
da vítima. Como acontece no filme Em Chamas, Lee Chang-Dong demonstra a
capacidade de explorar a mente e o pensamento dos protagonistas sem prejudicar
a caracterização sociológica dos contextos que estes percorrem. Mi-ja, que
recebe o diagnóstico de Alzheimer a meio do filme, decide inscrever-se num
curso de poesia que desperta nela o desejo, quase à beira da obsessão, de
conseguir exprimir-se em verso, numa altura em que começa a perder as palavras.
Lee Chang-Dong não convida o espectador a apiedar-se da sua personagem, mas
tão-pouco a reveste da aura de lutadora ou de cínica: a sua atitude tem pouco
de estóico e ela não se coíbe de desabafar ou refilar. Contudo, mostra uma
incapacidade total para transmitir aos outros os tremendos dissabores por que
passa, ao contrário dos seus colegas de curso, pródigos em histórias de vida. O
filme coloca em paralelo, felizmente sem forçar demasiado essa nota, a
desagregação cognitiva de Mi-ja num universo inóspito e a sua capacidade de ver
as coisas do mundo de uma maneira nova, livre de qualquer lastro ou pressuposto,
como recomenda o professor de poesia. Esta personagem extraordinária talvez
leve demasiado à letra este ensinamento, interrompendo a acção em vários
momentos para tomar notas num caderninho; ao fazê-lo, no entanto, produz
beleza: é a única aluna do curso que consegue redigir um poema. A qualidade
deste texto, lido na íntegra nos últimos momentos do filme, é o que menos
importa: o verdadeiro feito de Mi-ja é o de, ao sair de cena, trazer de novo à
vida a adolescente morta, num daqueles milagres que só no cinema são possíveis.
Ficamos sem saber o que acontece a esta protagonista: ela dissolve-se na
própria matéria do cinema, em imagens e em palavras, num processo que não
provoca estranheza e que surge como consequência natural da compaixão que a
move, em contraste com os arranjinhos, esquemas e calculismo que a rodeiam.
Talvez seja de evitar falar em “destino” perante um filme tão pouco dado à
grandiloquência, mas é nítida a sensação de que algo de profundamente justo se
cumpriu no final do percurso tão singular da senhora Mi-ja.
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