O enredo de Nuvens Dispersas (1967), último filme de Mikio Naruse, tem numerosos elementos em comum com outros do mesmo realizador, em particular o facto de se centrar numa personagem feminina obrigada a fazer escolhas difíceis na sequência de um acontecimento trágico. Yumiko (Yoko Tsukasa, excelente) vê-se obrigada, numa altura em que se preparava para emigrar e estava grávida do primeiro filho, a mudar de vida quando o marido morre subitamente devido a um atropelamento. O filme mostra a aproximação entre Yumiko e Shiro, o motorista responsável pelo atropelamento, que, depois de ser ilibado em tribunal, insiste em compensar financeiramente a viúva, preocupando-se com ela, numa altura em que, deserdada pela família do marido, se vê a braços com dificuldades financeiras e tem de ir viver para a estalagem onde trabalha a cunhada. Existem semelhanças interessantes entre este enredo e o de Wolfsburg (Christian Petzold, 2003), mas com uma diferença crucial: no filme de Naruse, a personagem feminina está desde o início ciente da culpa do responsável pela morte do ente querido, o que remove o elemento de surpresa e a tensão em torno da revelação, mas intensifica a ambiguidade moral da situação. Yumiko e Shiro são retratados como seres destroçados, ainda que com vontade de continuarem a viver: o luto de um e a culpa do outro fornecem-lhes um território comum de dor partilhada e a esperança de, ao abraçarem aquilo que os une, fugirem à solidão que parece inevitavelmente o seu destino. Tratando-se de um pessimista como Naruse, essa esperança desvanece-se inevitavelmente perante a constatação de que o passado é impossível de apagar e continuaria a assombrá-los para onde quer que fossem – e este é um filme pródigo em deslocações e exílios, sempre forçados. É curioso constatar os ecos que se estabelecem entre Nuvens Dispersas e Tormento (1964), sobretudo nas respectivas cenas finais. Em ambos os filmes, a aproximação entre as personagens principais culmina num afastamento do mundo e numa simulação de uma vida a dois que ambos sabem que nunca se irá concretizar. Nuvens Dispersas é um filme digno de encerrar a filmografia de Naruse: perfeitamente coerente com os temas e preocupações deste autor, notável pela maneira assumida com que abraça o registo do melodrama sem prescindir de invenções visuais e de detalhes formais desconcertantes que só alguém na plena posse dos seus recursos artísticos se pode permitir.
Outros filmes de Mikio
Naruse no Cinéfilo Preguiçoso: O Som da Montanha (1954); Ao Sabor da Corrente
(1956); Quando Uma Mulher Sobe as Escadas (1960); Tormento (1964).
Depois
de tanto ouvir falar de Joanna Hogg durante este ano, o Cinéfilo Preguiçoso
decidiu começar a ver a obra desta realizadora britânica desde o princípio,
antes de chegar ao tão aclamado The Souvenir (2019). À primeira vista, Unrelated
(2007) é mais um filme sobre um grupo de ingleses ou americanos a passarem
férias em Itália ou no Sul de França. É inevitável recordarmos imediatamente Beleza
Roubada (Bernardo Bertolucci, 1996), Chama-me pelo Teu Nome (Luca
Guadagnino, 2017) ou alguns filmes de Éric Rohmer. Ao contrário destes filmes,
no entanto, Unrelated pouco ou nada tem de idílico. Além de o espaço ser
retratado como mais seco e inóspito do que é habitual, o grupo de amigos que
passam férias nos arredores de Siena não demonstra interesse por livros nem se
entrega a conversas apaixonantes. Anna (Kathryn Worth), a protagonista, situa-se entre os dois grupos em que as personagens se dividem, sem encaixar
em nenhum deles: nem no dos casais mais velhos (entre os quais tem uma amiga de
infância), nem no dos filhos adolescentes destes casais. A câmara filma tudo
com o mesmo distanciamento que a protagonista sente. Dentro de casa, como
se o presente já estivesse imbuído de passado, tanto a câmara como Anna se movem como se pelos corredores de um museu, ao sabor do interesse despertado por um ou outro enquadramento, como nos acontece às vezes
perante determinadas pinturas. Fora de casa, as personagens conversam à mesa ou
junto à piscina, fazem compras, dão alguns passeios pela cidade. O grupo dos
adultos parece não só totalmente desinteressante mas também desinteressado da vida; o grupo
dos jovens parece igualmente desinteressante, mas pelo menos está interessado em
viver. Entre os jovens, destaca-se Oakley (Tom Hiddleston), uma figura que,
embora contaminada por esta mediocridade, lembra Tadzio de Morte em Veneza,
enquanto símbolo de uma juventude e beleza que simultaneamente fascinam e
escapam à protagonista. A maior parte do filme decorre nesta atmosfera mediana,
em que mesmo os pontos altos são triviais, entre conversas de telemóvel da protagonista
com o marido, ausente destas férias. Só perto do fim do filme percebemos as
razões para o estado de espírito e para a desconexão de Anna, naquele
que é o único salto narrativo num filme que vale a pena a ver sobretudo por
não ser narrativo. A primeira longa-metragem de Joanna Hogg deixa adivinhar uma
realizadora subtil, atenta à opacidade das aparências e desinteressada tanto de
histórias bem contadas como de grandes dramatismos – características invulgares
que despertam a curiosidade em relação aos seus outros filmes.
Não se pode dizer que Santiago, Itália (2018) apareça como um objecto estranho na carreira de Nanni Moretti. Já constava da sua filmografia um documentário: La Cosa (1990), sobre a crise de identidade do Partido Comunista Italiano. Além disso, o registo documental está presente, de forma mais ou menos discreta e mais ou menos ficcionada, em filmes como Querido Diário (1993) ou Palombella Rossa (1989). A atenção à realidade sociológica e política, temperada pelo humor e pela ironia, tem sido uma constante nos filmes deste realizador. O mítico desabafo «Diz qualquer coisa de esquerda, D’Alema!» (Abril, 1998) é apenas um dos mais famosos exemplos disso. Santiago, Itália baseia-se em imagens de arquivo e em depoimentos de pessoas que viveram os acontecimentos de Setembro de 1973 no Chile, tendo muitas delas sido forçadas ao exílio. A estratégia de organizar os depoimentos de acordo com uma linha cronológica e de maneira a construir algo parecido com uma narrativa é comum a muitos outros documentários, mas Moretti serve-se habilmente dela para alimentar a curiosidade do espectador. No início, a sucessão de exilados chilenos a exprimirem-se em italiano fluente pode suscitar perplexidade, mas esta vai-se dissipando à medida que é revelado o papel dramaticamente importante da embaixada italiana em Santiago do Chile, que acolheu um número significativo de opositores ao regime de Pinochet e propiciou o exílio destes para Itália. Santiago, Itália é eficaz e tocante não apesar da sua simplicidade formal, mas sim graças a esta. Moretti teve inteligência suficiente para perceber que a história do golpe sangrento que derrubou Allende e das suas sequelas, contada por aqueles que as viveram, dispensa artifícios para ser eloquente. Além deste mérito, saúde-se, num dos momentos mais fortes do filme, a afirmação frontal de que o documentarista não tem de ser imparcial, feita pelo próprio Moretti numa de apenas duas vezes em que aparece em frente à câmara, em confronto com o sequestrador e assassino Eduardo Iturriaga. Perante determinadas realidades, não há imparcialidade possível. Numa altura em que a canalhice política chega ao ponto de branquear ou exaltar a ditadura de Pinochet (vide Bolsonaro) e de perseguir aqueles que salvam a vida a refugiados (vide Salvini), constatar o óbvio – neste caso, que um presidente democraticamente eleito foi derrubado e que milhares de pessoas sofreram horrores por causa disso, e teriam sofrido ainda mais sem a generosidade alheia – pode ser a coisa mais urgente do mundo.
Sobre o filme Minha Mãe (real. Nanni Moretti, 2015).
No
filme Dor e Glória (Pedro Almodóvar, 2019), como acontece na maioria das
vidas, há muita dor e pouca glória. É um filme claramente autobiográfico (ou de
autoficção, se preferirmos), protagonizado por Antonio Banderas, que recebeu o
prémio de melhor actor no Festival de Cannes pelo papel de Salvador Mallo, um
realizador de cinema em crise e bloqueio criativo, sofrendo de achaques vários,
quatro anos depois da morte da mãe. Já se fizeram muitos e memoráveis filmes
sobre crises e impasses criativos, e este, um pouco à semelhança de All That
Jazz (Bob Fosse, 1979), caracteriza-se pela ênfase na componente física
associada à depressão e ao envelhecimento do protagonista: os pormenores
concretos das insónias, enxaquecas, fotofobia, dores de costas, síndrome de Forestier e do abuso de drogas são explorados exaustivamente. É preciso salientar, no entanto,
que, apesar da sua atenção obsessiva a estas dimensões e da sua pertença a esta
família cinematográfica, Dor e Glória se distingue por ser um filme mais
sobre uma saída da depressão e uma resolução do que sobre uma crise em si. Assim como, a propósito da
Recherche de Proust, outra obra de autoficção, já se disse que, se o
autor fosse precisamente como o narrador, nunca teria conseguido escrever aquele
livro, também Almodóvar só poderia ter realizado Dor e Glória depois de
já não ser bem como o protagonista, ou de já não ser o protagonista: as imagens
finais do filme sublinham precisamente esta dissociação. Apesar da insistência
na dor física e afectiva, Dor e Glória é um filme sobre a sua superação,
alcançada pelo protagonista graças à sua capacidade de pôr ordem nas suas
recordações, a alguns golpes do acaso e à força de vontade. Tem-se dito que se
trata do filme mais confessional de Almodóvar; contudo, entre as recordações revisitadas em flashback, os momentos menos conseguidos, mais
ingénuos ou mais sentimentais são aqueles em que se sente que há menos
mediação artística – sobretudo os que têm a ver com a relação dele com a mãe.
(É típico dos pais não terem os filhos que desejariam, tal como os filhos não
têm os pais de que precisariam, mas cada um de nós tem de viver a sua própria
vida.) Nos momentos mais interessantes, como os episódios relacionados com os
reencontros do protagonista, por um lado, com Alberto, um actor com quem há
muitos anos estava de relações cortadas e, por outro, com um ex-companheiro que
por acaso assiste a uma peça em que se conta a história da relação de ambos, há
uma reelaboração artística admirável. A encenação que Alberto faz de um texto
autobiográfico do protagonista é uma figuração não só da presença do próprio
Antonio Banderas em Dor e Glória, mas também da relação de Almodóvar com
outros actores, como Carmen Maura ou Eusebio Poncela, que desempenharam papéis decisivos
na sua obra, mas tiveram desentendimentos com o realizador. Dor e Glória
talvez não seja um filme tão forte do ponto de vista melodramático como A
Flor do Meu Segredo (1995), Em Carne Viva (1997) ou A Lei do
Desejo (1987), mas é muito menos simples e menos estritamente
autobiográfico e confessional do que parece, e está, sem dúvida, entre os mais
importantes deste realizador.
Sobre o filme Julieta (Pedro Almodóvar, 2016).
Para encetar a nova temporada, o Cinéfilo Preguiçoso, pouco interessado em Tarantino, recorreu ao videoclube de uma operadora de telecomunicações. Depois da Tempestade (2016) é a décima primeira longa-metragem de ficção realizada por Hirokazu Kore-eda, que viria a receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2018 pelo filme Shoplifters (2018). O Cinéfilo Preguiçoso ainda não viu mais nenhum filme de Kore-eda, mas, com base em Depois da Tempestade e nos resumos das suas outras obras, é tentador estabelecer uma filiação com autores japoneses como Ozu ou Naruse, pela maneira como estes trabalham narrativas baseadas em tensões familiares, situadas em ambientes domésticos predominantemente urbanos. Este filme centra-se em Ryota, um escritor recém-divorciado que, depois de ter escrito um romance premiado, tem de trabalhar como detective privado para sobreviver. Depois da Tempestade acompanha os esforços deste protagonista para se reaproximar do filho e se reconciliar com a memória do pai. Também as relações com a mãe, com a ex-mulher e com a irmã são exploradas; um dos aspectos mais conseguidos do filme é a maneira como evita secundarizar estas relações, mostrando como a evolução de Ryota enquanto pessoa depende criticamente da maneira como vê e é visto por todos os seus próximos. O filme é constituído por uma sucessão de episódios, quase todos protagonizados por Ryota, que culminam numa noite em que, para se abrigarem de um furacão, as personagens principais se vêem obrigadas a pernoitar no espaço confinado de um apartamento. Este é o momento mais forte de um filme que até ali se desenvolve de modo algo convencional, ainda que explorando subtilmente algumas temas interessantes, como a relação das várias personagens com a caligrafia ou com o dinheiro. A metáfora meteorológica e o huis clos forçado são estratagemas usados até à exaustão na história do cinema e de outras artes, mas Kore-eda, graças à sua sensibilidade e técnica, consegue resolver de forma simples e inteligente as diferentes correntes emocionais do filme. Não existe uma reconciliação no sentido clássico do termo: nada indica que as vidas das personagens irão sofrer alterações profundas, nem que Ryota porá a sua vida em ordem, resolverá os seus bloqueios e passará a cumprir as suas obrigações. Contudo, o espectador fica com a impressão clara de que algo mudou, e de que essa mudança pode ser o germe de um processo positivo capaz de mitigar o sofrimento e a desorientação de algumas personagens. Transmitir essa impressão com a economia de meios e a naturalidade não forçada que caracteriza Depois da Tempestade é o maior mérito de Kore-eda.