8 de dezembro de 2019

A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes


Os filmes de Hong Sang-Soo recorrem quase invariavelmente à repetição como mecanismo formal, explorado com variantes e modulações subtis. Em relação a outros filmes do mesmo realizador mais conhecidos entre nós, A Virgem Desnudada Pelos Seus Pretendentes (2000), visto recentemente na retrospectiva organizada pela Cinemateca, distingue-se por mostrar de modo mais franco a vertente sexual das relações entre as personagens através do contraste entre desejos femininos e masculinos, mas é difícil (e provavelmente incongruente) escrever sobre os filmes de Hong sem recorrer também à repetição, como o Cinéfilo Preguiçoso tem aprendido à sua custa. A comparação com Rohmer, por exemplo, é uma constante e volta a fazer sentido neste caso. Tal como nos filmes do realizador francês, as personagens de Hong movimentam-se num território ambíguo, onde a intenção e o acaso se confundem, com o que isso implica de ambiguidade moral. Os títulos das duas partes do filme (“Talvez Acidente” e “Talvez Intenção”) sugerem isso de forma explícita. Contudo, tal como nas restantes obras em que Hong recorre à estrutura dual, nada é aquilo que parece: a segunda parte regressa aos acontecimentos da primeira, que giram em torno de uma argumentista disputada pelo realizador que a emprega e por um galerista, mas está longe de ser uma versão alternativa da história que derivaria de uma qualquer escolha de uma personagem. Ambas as partes integram decisões conscientes, impulsos e coincidências, assim como dissonâncias, meias-verdades e pontos de vista alternativos. A cronologia (como costuma acontecer nestes filmes) é fluida e incerta, apesar de o final feliz, anunciado de forma explícita por uma legenda a meio do filme e por um diálogo perto do final, parecer fornecer um ponto de ancoragem temporal – embora pareça arriscado garantir que o encontro amoroso no hotel seja “feliz”, ou sequer “final”. A revisitação dos episódios do enredo, apesar de subverter gentilmente a lógica e a cronologia (ou talvez por isso mesmo), propõe uma perspectiva enriquecedora sobre as motivações, fraquezas e hesitações das personagens. Há poucos realizadores contemporâneos capazes de mostrar a complexidade humana de forma tão engenhosa e com tanta economia de meios. Os homens e as mulheres dos filmes de Hong parecem mais insignificantes do que os heróis trágicos ou aquelas personagens maiores que a vida, cobiçadas por qualquer actor com ambições de ganhar um Óscar; contudo, chegamos ao fim de um filme como este com uma impressão de profundidade nos retratos da natureza humana. As vidas destas personagens banais ganham a legitimidade de matéria de cinema graças à maneira como Hong as retrata: ao sabor da contingência, dos caprichos alheios, das hesitações, sempre em busca da felicidade e fugindo à dor. A retrospectiva Hong Sang-Soo prolongar-se-á até Janeiro.

Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: The Day He Arrives (2011), Haewon e os Homens (2013), Right Now, Wrong Then (2015), On the Beach at Night Alone (2017), O Dia Seguinte (2017).