Em face da pobreza das estreias recentes em sala e da irregularidade dos horários de exibição, o Cinéfilo Preguiçoso dá-se por feliz por ter conseguido ver Mulher de Um Espião (2020), de Kiyoshi Kurosawa. Este realizador japonês tem uma carreira já longa, que passou por filmes de género (policial, soft core) e evoluiu para filmes com mais pretensões, aclamados pela crítica e nos festivais. Contudo, nunca deixou de recorrer a convenções e temas do cinema comercial, jogando com as expectativas e a bagagem cinéfila dos espectadores. Mulher de Um Espião pode ser classificado como um filme de espionagem, passado no Japão, na época imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial. Um dos eixos principais do enredo, que opõe as perspectivas nacionalista e cosmopolita, baseia-se nas suspeitas que Satoko alimenta em relação ao seu marido, Yusaku, um negociante próspero e cineasta amador, à medida que se acumulam os indícios de que ele poderá ser um espião prestes a divulgar segredos sobre crimes de guerra do exército japonês na Manchúria. Estamos, claramente, em terrenos hitchcockianos – o autor de filmes como Suspicion (1941) é uma das influências assumidas por Kurosawa. É inevitável pensar também no soberbo Agente Triplo (2004), de Éric Rohmer. O filme não perde intensidade quando o espectador e Satoko vêem as suas suspeitas confirmadas: a cumplicidade entre marido e mulher engendra novas camadas de ambiguidade e incerteza que mantêm o interesse até ao final, deixando em aberto vários cenários possíveis. Este ambiente de incerteza sobre as intenções das personagens é explorado por meio de enquadramentos sóbrios e cenários burgueses e elegantes, interrompidos ocasionalmente por alguns espaços ou sequências mais misteriosos, filmados com uma definição que faz realçar os mínimos detalhes. Isto é coerente com o que Kurosawa fez em O Segredo da Câmara Escura (2016): nesse filme, os minuciosos daguerreótipos não fazem mais do que reproduzir a superfície, deixando intacta a natureza oculta dos retratados. Em Mulher de Um Espião, as imagens filmadas por Yusaku servem para a investigação (provas dos crimes que pretende denunciar), mas também para recreio e mistificação (o filme amador em que Satoko faz, na ficção, os mesmos gestos furtivos que fará na vida real, e que será apreendido pelas autoridades em vez do filme incriminatório). Existem muitos outros motivos de interesse neste filme que, por trás de um aparente academismo e da conformidade com códigos testados há décadas, revela uma inteligência narrativa notável. Saliente-se também a colaboração de Ryusuke Hamaguchi no argumento. Identificar a contribuição do celebradíssimo autor de Drive My Car (2021) é um exercício arriscado, mas é muito evidente que Hamaguchi sempre se deu bem com histórias em que a natureza íntima ou a identidade das personagens se vai revelando aos poucos, por vias tortuosas e inesperadas.
Outros filmes de Ryusuke Hamaguchi no Cinéfilo Preguiçoso: Touching the Skin of Eeriness (2013), Happy Hour (2015), Asako I & II (2018), Roda da Fortuna e da Fantasia (2021).