30 de julho de 2023
A Lula e a Baleia
23 de julho de 2023
Armageddon Time
O Cinéfilo
Preguiçoso já desistiu de compreender os arcanos da distribuição
cinematográfica. Armageddon Time (2022), o filme mais recente de James
Gray, que não é propriamente um desconhecido, está disponível no videoclube de
uma operadora de telecomunicações sem ter passado pelas salas de cinema
portuguesas. É um filme assumidamente autobiográfico, que se situa no início
dos anos 80, em Nova Iorque. Podemos compará-lo com outro filme recente, Os Fabelmans (2022), de Steven Spielberg. Existem semelhanças óbvias tanto no
percurso e na abordagem aos protagonistas, como na importância atribuída ao
papel da família. Outra semelhança é o excelente elenco adulto: aqui, Anne
Hathaway, Jeremy Strong e Anthony Hopkins. Há, no entanto, pelo menos uma
diferença interessante. Em Armageddon Time, o jovem Paul Graff não parece
mostrar o mínimo interesse pelo cinema. A sua ambição é ser artista visual,
sobretudo depois de uma visita de estudo ao Museu Guggenheim em que descobre as
obras de Kandinsky. Esta visita, assim como as cenas em que Paul vagueia
livremente pela cidade na companhia do melhor amigo, são das mais conseguidas
do filme, fazendo lembrar as deambulações de Jean-Pierre Léaud em Os 400
Golpes (1959). A amizade com Johnny, um dos eixos centrais do filme, é
retratada de forma sóbria e eficaz. O facto de Johnny ser negro, enquanto Paul
é branco e judeu, parece irrelevante para a relação que se estabelece entre
eles. Numa entrevista, Gray afirmou que as questões da raça e classe social são
aspectos fundamentais neste filme, mas essas questões, em particular as tensões
raciais, aparecem de forma latente, incrustadas no espírito do tempo e
reveladas através de alusões discretas, sem lições de moral. Armageddon Time
escapa a algumas armadilhas típicas do filme autobiográfico, mais ou menos
nostálgico. A infância é mostrada como um período desolador, apesar de alguns
momentos de felicidade intensa. Tal como a Ana de Cria Corvos (1976),
Paul parece completamente perdido num mundo feito à medida dos adultos,
caracterizado por regras e constrangimentos impenetráveis. O contraste violento
entre o mundo tal como ele é e as fantasias da infância domina por completo o
filme, marcado por um tom sombrio e melancólico, para o qual contribui uma
paleta cromática onde predominam tons outonais e pardos. Armageddon Time
dispensa epifanias finais ou sugestões de que a personagem está, finalmente,
pronta para transpor o limiar da idade adulta. De certo modo, Paul parece tão
perdido no início do filme como na cena final, na qual abandona um baile no Dia
de Acção de Graças a meio de um discurso proferido pelo pai de Donald Trump:
apesar de esta saída poder ser vista como uma revolta contra a perspectiva
elitista da escola privada onde está matriculado, também pode não passar de
outra fuga inconsequente. Gray declarou: «Queria fazer alguma coisa com
vitalidade imediata, com humanidade e calor humano, mesmo se a história fosse
triste.» Conseguiu. A tristeza não tem de ser uma tragédia. Faz parte da vida.
Ler também: A Cidade Perdida de Z (James Gray, 2016).
16 de julho de 2023
Os Exilados Românticos
O Cinéfilo Preguiçoso está interessado em ver todos os filmes de Jonás Trueba. Depois de Têm de Vir Vê-la (2022), foi a vez de Os Exilados Românticos (2015, disponível em DVD), outro filme breve e cheio de leveza sobre um grupo de amigos. De acordo com o próprio realizador, é uma espécie de filme-canção, que nasceu quando a cantora Miren Iza, que também desempenha um papel importante no filme, lhe pediu um videoclip para uma canção dos Tulsa, a banda de que é vocalista. Na altura, Trueba tentou esquivar-se, mas mais tarde acabou por fazer um filme inteiro com banda sonora composta pela banda, acompanhando três amigos no limiar da idade adulta que decidem fazer uma viagem de carrinha nas férias de Verão. Com um ritmo descontraído, o guião é fluido e foi desenvolvido ao longo da própria viagem (de quatro mil quilómetros, percorridos em doze dias) em que as filmagens se realizaram, com paragens em Toulouse, Paris e Annecy. Cada amigo tem um reencontro com uma mulher com quem já teve uma ligação amorosa. Em dois encontros, a ligação é retomada; noutro, não. Ao longo deste percurso, em concertos e não só, vão-se cruzando com a personagem da cantora, quase como se fossem criados e manipulados por ela, ou indissociáveis dela. Trueba diz que gosta de mostrar as personagens a ouvir música não só porque é uma actividade comum na vida das pessoas, mas também porque é uma porta de entrada sem palavras e sem actos para a vida interior delas. Como em Têm de Vir Vê-la, as personagens falam sobre livros não só para comentarem as suas próprias vidas, mas também para viverem e tomarem decisões. O título do filme é inspirado pelo volume The Romantic Exiles (1949), de E. H. Carr, um ensaio sobre Alexander Herzen, um escritor russo do século XIX, e o seu círculo de amigos – e o exílio é o tema da tese que um dos protagonistas tarda em terminar, assim como as personagens com que os três amigos se cruzam falam línguas diferentes e vivem longe do sítio onde nasceram. O livro mais discutido neste filme é o excelente volume de ensaios As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg. Jonás Trueba faz filmes sobre esse tema tão simples e tão complicado que é a vida. O motor principal da viagem dos protagonistas de Os Exilados Românticos parece ser o desejo das personagens de se sentirem vivas, e também os espectadores se sentem vivos quando vêem este filme, que é bom em qualquer época do ano, mas particularmente adequado ao Verão.
9 de julho de 2023
Marriage Story
2 de julho de 2023
Cria Corvos
Visto na Cinemateca, Cria Corvos (Carlos Saura, 1976) acompanha a história de Ana – interpretada pela extraordinária Ana Torrent, pouco depois de ter sido a protagonista de O Espírito da Colmeia (Victor Erice, 1973) –, uma menina de oito anos que perdeu recentemente a mãe e o pai. Ana vive no centro de Madrid, com as duas irmãs, uma tia, uma empregada e uma avó já muito debilitada, numa casa grande com uma piscina vazia e um jardim descuidado e cercado de muros altos. Desde a primeira cena, ainda sem compreendermos plenamente o que se passa, seguimos o ponto de vista da protagonista, que, na penumbra da casa misteriosa, assiste ao longe à morte do pai, numa situação duvidosa. Depois, friamente, despeja no lava-louça um copo de leite hitchcockiano e lava-o. Assim é que se começa um filme! Reina nesta casa uma atmosfera de isolamento, em que se confundem pesadelos, fantasias, recordações, acções, incompreensões e fantasmas típicos do imaginário infantil. (Quem conhece o livro We Have Always Lived in the Castle, de Shirley Jackson, vai encontrar neste filme alguns pontos em comum, entre os quais a função ambígua do veneno.) Nem sempre os espectadores percebem imediatamente a que categoria devem associar a cena a que assistem, e gera alguma perplexidade o facto de Geraldine Chaplin (companheira do realizador na altura, e também financiadora dos seus projectos e uma das responsáveis pela sua promoção internacional) assumir tanto o papel de mãe como o de Ana já adulta, mas o filme é tão equilibrado que nunca se torna confuso. Tanto enquanto criança como enquanto adulta, Ana, testando constantemente as fronteiras entre vida e morte, tenta processar, por um lado, a ausência da mãe e o seu sofrimento em vida, e, por outro, a violência, o machismo, o carácter traiçoeiro e a agressividade militar do pai (associados ao regime franquista e a Franco, que morreu em 1975). As cenas que partilha com a mãe ou com o seu fantasma têm uma intensidade que recorda vivamente alguns momentos de filmes de Ingmar Bergman, como Lágrimas e Suspiros (1972) ou Persona (1966). Entre outros rituais de Ana, como a expressão («Quero que morras»), ou a sua tendência para aparecer em lugares em que lhe perguntam «O que estás a fazer aqui?», a repetição no gira-discos da canção Porque te vas, de Jeanette, e a recordação de uma composição de Federico Mompou que a mãe costumava tocar no piano parecem ter a função de a tranquilizar e, de certo modo, traduzem o ritmo repetitivo da memória, que revisita incansavelmente os acontecimentos do passado. O provérbio que inspira o título do filme – «Cria corvos e eles arrancar-te-ão os olhos» – chama a atenção não só para a violência inscrita nesta família, mas também para a garra e a rebeldia que a protagonista, mais hábil a empunhar uma pistola do que a pegar em talheres, desenvolveu para sobreviver à sua «má educação». Apesar de este excelente filme de Carlos Saura emergir de uma época bastante precisa da história de Espanha, trabalha uma dimensão intemporal em que muitos de nós reconhecem tanto a sua própria infância como uma incompreensão que nunca se dissolve completamente em face da vida dos adultos.