O tema da sorte e das coincidências tem surgido com frequência na obra de Woody Allen, por vezes de forma bem explícita, como em Match Point (2005). Mesmo nos filmes em que este tema parece ausente, é comum a narrativa evoluir ao sabor de encontros acidentais entre as personagens, muitas vezes nas ruas de Nova Iorque. Em Golpe de Sorte (2023), há uma personagem (Jean – o sempre excelente Melvil Poupaud) que despreza os que confiam na sorte e se gaba de controlar o destino e de ser invulnerável aos acontecimentos fortuitos. Ainda assim, Fanny (Lou de Laâge), sua mulher, envolve-se com um antigo colega de liceu (Alain – Niels Schneider) com quem por acaso se cruza na rua. Alain acredita no azar e nas coincidências e é o perfeito oposto de Jean em mais do que um aspecto. Talvez esteja aí a explicação para a atracção que Fanny sente por ele; à falta de química ou afinidade óbvia, o espectador sente necessidade de procurar razões mais abstractas. Aliás, esse é um dos problemas de Golpe de Sorte: a interacção dos actores (apesar de nenhum desempenho ser francamente mau) é pouco convincente. Sente-se falta da coesão que Allen costuma obter dos seus elencos. O facto de ter rodado um filme numa língua que não domina pode ter contribuído para isso. Há também algum desequilíbrio no tratamento das situações narrativas: o desaparecimento de Alain é de uma brutalidade sinistra que destoa do resto do filme, e as intervenções dos criminosos romenos, talvez destinadas a injectar alguma comicidade num filme bastante sisudo, resultam grotescas. Golpe de Sorte é um filme realizado com grande profissionalismo, que explora com eficácia o tema central que se propõe – a impossibilidade de as pessoas se subtraírem às contingências do acaso –, obtendo um desfecho completamente inverosímil, embora coerente com a premissa do filme. Há elementos interessantes, como o papel da mãe de Fanny (Valérie Lemercier), que de personagem secundária irrelevante passa a motor da narrativa, um pouco à maneira de certas personagens de Hitchcock que, por teimosia ou escrúpulo, teimam em investigar aquilo que só elas consideram suspeito – por exemplo, em The Lady Vanishes (1938). O filme, contudo, não dissipa a impressão de ser uma obra de rotina, bem menos intensa do que Match Point ou Cassandra’s Dream (2007), para citar outro thriller de Allen, aliás bastante subestimado. Em comparação com os títulos mais recentes, falta-lhe o encanto agridoce de Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2019), ou uma presença marcante, como a de Wallace Shawn em Rifkin’s Festival (2020). Não é a primeira vez que Woody Allen realiza um filme rotineiro e pouco inspirado, embora isso não aconteça com frequência. Esperemos que, como é costume, nos surpreenda pela positiva da próxima vez.
Outros filmes de Woody Allen no
Cinéfilo Preguiçoso: Broadway Danny Rose
(1984); Hannah e as Suas Irmãs (1986); Setembro (1987); Irrational Man (2015); Café Society (2016); Roda Gigante (2017); Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2019); Rifkin’s Festival (2020).