Na ficha técnica de A Romancista e o Seu Filme (2022), estreado recentemente em sala, o nome Hong Sang-Soo aparece por todo o lado. O realizador também é responsável pela produção, escrita do argumento, montagem, fotografia e música. Esta auto-suficiência pode fazer recear que o filme se resuma a um devaneio solipsista, mas os que conhecem o percurso de Hong sabem que é um receio infundado. Todos os seus filmes mostram personagens apanhadas em pleno percurso – errático e nem sempre assumido – em busca da felicidade, ou de uma maneira de se exprimirem artisticamente que funcione como meio para esse fim. Hong está sempre atentíssimo aos anseios, hesitações e inadequações dessas personagens, e constrói os seus argumentos em função destas. Esta generosidade e atenção são o motor principal dos seus filmes, mais do que qualquer eventual tentativa de transmitir uma mundividência pessoal. Em A Romancista e o Seu Filme, o que é dito e mostrado não permite mais do que uma reconstrução precária e especulativa das motivações e dos antecedentes das personagens. Sabemos que as pessoas com quem a romancista, por deliberação ou acidente, se cruza deixaram de escrever ou de filmar, e que isso as angustia, por mais que tentem racionalizar o facto. O que leva a romancista a, de repente, convencer-se de que tem de fazer um filme? Talvez o impulso tenha surgido no momento em que aponta para o exterior a câmara portátil emprestada pelo realizador com quem esteve para trabalhar, anos antes, e com quem se volta a encontrar por mero acaso. Pode ter bastado essa perspectiva, partilhada com o espectador do filme, das pessoas, muito ao longe, a desfrutarem de caminhadas (essas mesmas caminhadas que são um leitmotiv do filme – é preciso disponibilidade para andar pelo mundo, se queremos encontrar os que poderão ajudar a mudar a nossa vida). Nos filmes de Hong, a escassez de explicações é substituída vantajosamente por uma estrutura conceptual quase invisível, por vezes não mais do que um fio que, apesar de ténue, sustenta todo o filme e confere sentido, e quase sempre uma intensidade emocional inesperada, ao desfecho. Do que não restam dúvidas é que o filme da romancista foi feito: o espectador vê excertos. Perante essa evidência, pouco importam as razões e motivações. A cena que encerra A Romancista e o Seu Filme, além de extraordinariamente comovedora, pode representar toda a obra deste cineasta sul-coreano: quando sai da sala onde projectaram o filme que protagoniza, Kim Min-Hee permanece de pé, sozinha e em silêncio durante alguns segundos. A simples presença de uma mulher, visivelmente tocada por aquilo que acabou de ver, vale mais do que qualquer tentativa de decifrar os seus pensamentos ou de vasculhar na sua história pessoal. Os argumentos de Hong não são ferramentas de prospecção: são roteiros que descrevem as consequências das escolhas das pessoas nas vidas dos outros e na própria. As considerações sobre valor moral e sobre a natureza humana ficam para quem tiver vontade de as fazer. A Romancista e o Seu Filme recebeu um dos Ursos de Prata no Festival de Berlim de 2022, o mesmo em que o júri, presidido por M. Night Shyamalan, atribuiu o Urso de Ouro a Alcarràs (2022). O Cinéfilo Preguiçoso também gostaria muito de ver Lá em Cima (2022), o outro filme do mesmo realizador que estreou ao mesmo tempo, mas os horários de exibição pouco razoáveis demoveram-no.
Outros filmes
de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: A Virgem Desnudada pelos Seus
Pretendentes (2000); Conto de Cinema (2005);
Mulher na Praia (2006); O Filme de Oki (2010); The Day He Arrives (2011); Haewon e os Homens (2013); Our Sunhi (2013); Hill of Freedom (2014); Right Now, Wrong Then (2015); On the Beach at Night Alone (2017); O Dia Seguinte (2017); Hotel à Beira-Rio
(2018); A Mulher que Fugiu
(2020); Apresentação (2021).