Depois de muito procurar no videoclube de uma operadora de telecomunicações, o Cinéfilo Preguiçoso lá conseguiu encontrar A Mulher que Fugiu (2020), de Hong Sang-Soo, cuja carreira em salas foi interrompida pela pandemia. Este filme divide-se em três partes, que correspondem aos encontros da protagonista, Gam-hee (Kim Min-hee), com três amigas: uma separada, uma solteira, a outra casada com um ex-namorado de Gam-hee. O filme acompanha as conversas destas amigas sobre as suas casas e relações amorosas e também sobre os vizinhos. As conversas são calmas e as personagens parecem relativamente tranquilas, mas adivinham-se erros tempestuosos no passado, pelo que se depreende que esta tranquilidade foi conquistada a custo. Em relação aos filmes anteriores de Hong Sang-Soo, temos personagens menos espalhafatosas, menos dadas a actos irreflectidos e a delírios embriagados. As discussões e a agressividade são exclusivas de três personagens masculinas bastante secundárias (o Homem dos gatos, o Jovem Poeta e o ex-namorado que traiu a protagonista e se tornou um escritor de sucesso), sempre retratadas de costas, em plena manifestação de agressividade. Tendo em conta que, em filmes anteriores deste realizador, as mulheres tinham muitas vezes atitudes tão ou mais irracionais e reprováveis do que os homens, dir-se-ia que Hong Sang-Soo tem agora uma relação mais pacífica com o género feminino. Do ponto de vista formal, o realizador continua a explorar as repetições que distinguem a sua obra, mas de modo menos insistente, menos interessado em efeitos totalmente desconcertantes; já não temos, por exemplo, repetição de quase todos os elementos (personagens, diálogos, acontecimentos), com algumas variações difíceis de justificar; neste filme, quase não há repetições que parecem gratuitas. As que existem (o acto de descascar uma maçã, por exemplo) funcionam como ecos ténues de filmes anteriores de Hong, vagas sugestões de determinismo e ordem. Nas três secções do filme, a protagonista vê através de ecrãs: na primeira, vê pelo circuito de videovigilância; na segunda, vê pela janela; na terceira, vê um filme no cinema. Em todas estas secções vê também, através das amigas, como seria a sua vida se estivesse na situação em que cada uma delas está. No fim das primeiras duas partes, vemos a protagonista afastar-se da casa em que esteve. No fim da terceira, começa a afastar-se, mas depois volta atrás, para ver o filme mais uma vez. Talvez regresse ao cinema por sentir que não percebeu bem o filme – pareceu-lhe um filme “calmo”, mas, como no filme que ela própria protagoniza, é possível que a calma seja enganadora. Como diz o protagonista de Conto de Cinema, “pensar é preciso” e, ao contrário do que se passa na vida, no cinema podemos sempre ver o filme outra vez. Tem-se discutido muito o título deste filme. A “mulher que fugiu” será a protagonista, fugindo do seu próprio casamento ou saboreando a liberdade depois de cinco anos em que nunca se separou do marido por um dia sequer? Ou só aquela vizinha, referida de passagem, que certa noite saiu de casa, deixando o marido e a filha, para nunca mais voltar? Tendo em conta outros filmes de Hong Sang-Soo, é possível que haja uma sugestão de morte na descrição “A Mulher que Fugiu”, visto que esta vizinha desapareceu sem deixar rasto. Nenhuma das outras personagens femininas está em fuga. Talvez tenham fugido no passado, mas no presente limitam-se a confrontar-se suavemente umas com as outras e com as suas próprias escolhas. O título pode, portanto, ser uma pista falsa. O tema principal do filme não é o desejo de liberdade (associado ao desejo de fuga), mas antes uma questão mais complexa: a de como viver, alcançando a liberdade dentro de determinadas estruturas que não são completamente livres.