5 de fevereiro de 2023

Poeta

 
Ouve-se muitas vezes dizer que já ninguém lê poesia e que se trata de uma actividade quase marginal e pouco reconhecida pela sociedade. Por isso, é interessante constatar a relativa abundância de filmes recentes, normalmente bastante bons, que abordam a actividade poética. Não estamos a falar de filmes biográficos, como o excelente A Quiet Passion (2016), de Terence Davies, sobre Emily Dickinson, mas sim de filmes como Poesia (Lee Chang-Dong, 2010), Un Jeune Poète (Damien Manivel, 2014) e Paterson (Jim Jarmusch, 2016). Todos eles têm como protagonistas pessoas normais que escrevem poemas, entre a indiferença, os encorajamentos mais ou menos sinceros ou a condescendência daqueles que as rodeiam. Apesar de Poeta (Darezhan Omirbaev, 2021), visto esta semana no Nimas, se distinguir destes filmes pelo facto de Didar, a personagem principal, já ter obra publicada e algum reconhecimento, as dúvidas e hesitações sobre o lugar da poesia na sociedade e a tensão entre a criação e as imposições do dia-a-dia também são temas recorrentes. Didar tem uma vida modesta, com um emprego que parece enfadonho, mas estável. No metro, lê um livro sobre o poeta cazaque Makhambet Otemisuly, que liderou uma revolta contra o domínio russo no século XIX. A morte violenta de Makhambet e as tentativas das gerações seguintes para honrar a sua memória, através de um busto e de um monumento, alimentam um enredo paralelo. A recusa de Makhambet de pôr a sua arte ao serviço do invasor tem como paralelo a recusa de Didar, quase dois séculos mais tarde, de escrever a biografia de um magnata, apesar da vultuosa quantia que lhe oferecem. Poeta aborda o tema da independência artística de forma frontal e explícita. O paralelismo entre o século XIX e a época contemporânea reforça a ideia de base, ao mesmo tempo que introduz um elemento de sátira e ironia: ao passo que a atitude de Makhambet lhe custou a vida, a única consequência que Didar sofrerá será não ter dinheiro para comprar o Cadillac com que sonha. Na sociedade de hoje, escrever ou não escrever poesia, ser ou não ser íntegro, são decisões acolhidas com uma indiferença muito semelhante. Os apontamentos de sátira e crítica, juntamente com breves cenas oníricas ou menos realistas, são inseridos com moderação e inteligência, contribuindo para uma impressão global de sobriedade e equilíbrio. Poeta mostra uma situação de domínio cultural e linguístico: por um lado, o russo, segunda língua oficial do Cazaquistão, ameaça o futuro do idioma cazaque; por outro, ambas as línguas são ameaçadas pela hegemonia crescente e globalizante do inglês. Escrever poemas em cazaque é um acto que coloca o seu autor numa posição minoritária do ponto de vista linguístico, cultural e artístico. A poesia, no entanto, já não é veículo para heroísmos nem para grandes gestos simbólicos. Omirbaev mostra, com discrição e justeza, um homem que sabe que não será a poesia a subtraí-lo ao anonimato nem à mediania. O gesto de continuar a escrever, apesar dessa certeza, talvez seja o único acto de resistência ao seu alcance.