Vêm aí a Festa do Cinema Francês e o LEFFEST, onde o Cinéfilo Preguiçoso planeia ver várias sessões. Esta semana, no entanto, optou por um filme em DVD – de um realizador prolífico e repetitivo, mas sempre apaixonante: Hong Sang-Soo. No início de Hill of Freedom (2014), Kwon (Seo Younghwa) recebe um conjunto de cartas, mas, sem querer, deixa-as cair, as folhas espalham-se e ela não só as apanha na ordem errada como também perde uma delas. Por isso, à medida que esta personagem lê as cartas, os espectadores assistem às cenas que as palavras descrevem, mas as cenas não seguem a ordem cronológica dos acontecimentos. As cartas foram enviadas por Mori, interpretado pelo actor japonês Ryo Kase, nosso conhecido de filmes como Cartas de Iwo Jima (Clint Eastwood, 2006) ou Like Someone in Love (Abbas Kiarostami, 2012), um professor de línguas que regressa à Coreia, onde viveu anos antes, para, sem ter combinado nada com ela, tentar rever Kwon, por quem continua apaixonado. Em toda a sua obra, Hong Sang-Soo explora formas de desconforto; em Hill of Freedom, o desconforto também é linguístico: pelo facto de o protagonista ser um japonês que não fala coreano, as personagens comunicam principalmente em inglês, o que condiciona tudo o que contam sobre si próprias e o tom em que o fazem. Forçadas a usar um idioma que dominam mal, recorrem a expressões cruas e directas, que, em circunstâncias normais, seriam amortecidas por circunlóquios e fórmulas. Nas cartas, Mori descreve a Kwon todas as peripécias em que se envolve enquanto espera por ela. Os acontecimentos são típicos do cinema de Hong Sang-Soo – desencontros, traições, compromissos, discussões, mal-entendidos, conversas em que uma personagem tenta rebaixar outra, avanços precipitados e recuos necessários. Como acontece em A Mulher que Fugiu (Hong Sang-Soo, 2020), ficamos com a sensação de que a relação principal – entre o autor e a destinatária das cartas – é vista através da lente das relações destas diferentes personagens, mas nunca sabemos o que se passou entre eles antes do início do filme. A cronologia baralhada deixa os espectadores sempre atentos, para tentarem perceber o que aconteceu antes e depois. Durante todo o filme, Mori faz-se acompanhar de um livro intitulado O Tempo, em que, como ele próprio explica num momento hilariante, o autor defende que o passado, o presente e o futuro têm existência simultânea (será A Ordem do Tempo, de Carlo Rovelli?) e que a passagem do tempo é uma noção meramente psicológica, mas talvez o filme chame mais a atenção para questões de narração. Nunca se esclarecem totalmente os acontecimentos descritos na folha perdida: interrogamo-nos sobre o que poderá ter acontecido. A história tem um final feliz, mas assistimos a uma cena adicional depois de sabermos que os protagonistas ficaram juntos, o que instabiliza tudo. Tal como acontece em muitas outras obras de Hong, o artifício narrativo (neste caso, a ordem cronológica aleatória que reflecte a mistura das cartas) dá pistas para a interpretação, mas não esgota a riqueza do filme. Hill of Freedom dura pouco mais de uma hora, mas continuamos a pensar nele durante muito tempo depois.
Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes (2000); Conto de Cinema (2005); Mulher na Praia (2006); O Filme de Oki (2010); The Day He Arrives (2011); Haewon e os Homens (2013); Our Sunhi (2013); Right Now, Wrong Then (2015); On the Beach at Night Alone (2017); O Dia Seguinte (2017); Hotel à Beira-Rio (2018); A Mulher que Fugiu (2020); Apresentação (2021).