1 de maio de 2022

Shirley

Disponível nos videoclubes das operadoras de telecomunicações, o filme Shirley (Josephine Decker, 2020) adapta um romance de Susan Scarf Merrell inspirado na vida da escritora americana Shirley Jackson (1916-1965), autora de obras-primas como The Haunting of Hill House (1959) e We Have Always Lived in the Castle (1962). Assim, apesar de acompanhar um período específico na vida desta escritora – depois da publicação do conto «The Lottery» (1948) e durante a escrita do romance Hangsaman (publicado em 1951) –, Shirley não é um simples biopic, mas sim a adaptação de uma ficção que explora a relação de Shirley Jackson e do marido – o crítico e professor universitário Stanley Edgar Hyman – com um casal mais jovem que fica hospedado na casa deles. A partir desta base, o filme, com apenas um ou outro momento mais duvidoso, capta bem não só o universo e a estética de Shirley Jackson, mas também a atmosfera de terror psicológico associada à dificuldade da criação literária. A realizadora e a argumentista, Sarah Gubbins, superam com competência o elemento que poderia ser mais problemático, no sentido em que facilmente poderia dar origem a exageros dramáticos: a própria figura de Shirley Jackson, associada a problemas ou temas como a agorafobia, a paranóia, a depressão, a ansiedade, a dependência de drogas, o excesso de peso e a prática de bruxaria, que ela mesma, aliás, explora literariamente. Seria fácil caricaturar uma personalidade deste género e já vimos Elizabeth Moss ter interpretações histriónicas e descontroladas (recorde-se, por exemplo, Her Smell, de Alex Ross Perry), mas neste filme a actriz capta eximiamente a presença da Shirley Jackson que imaginamos a partir dos livros e das fotografias que deixou. Como em Traições (Arnaud Desplechin, 2021), Shirley é um filme sobre um(a) escritor(a) em que a questão do adultério desempenha um papel importante. Note-se, no entanto, que a mudança do ponto de vista masculino para o feminino faz toda a diferença. Em Traições, um dos elementos que mais estranheza causam é termos uma protagonista que encarna uma fantasia masculina e o estereótipo literário da mulher adúltera entediada, deixando a sensação de que nenhuma mulher pensaria e falaria assim a não ser em livros escritos por homens. Em Shirley, quem escreve e quem vê é uma mulher; as traições do marido são um elemento entre outros numa vida em que há coisas mais importantes a fazer; e mesmo o marido (interpretado por Michael Stuhlbarg, que já vimos noutros papéis de professor universitário, em particular no magnífico A Serious Man, dos irmãos Coen, de 2009) é uma personagem mais complexa, não sendo reduzido a um simples mulherengo. Por outras palavras, o universo feminino não é totalmente deglutido pelo universo masculino, apesar de as agressões do segundo estarem em evidência. Shirley é um bom filme, que agradará tanto a fãs de Shirley Jackson como aos que nunca contactaram com a obra desta e gostam de ver filmes sobre escritores e o processo de criação literária. Além disso, por ser sobre uma escritora que adapta um romance escrito por uma mulher e também é realizado por uma mulher expressa pontos de vista que não costumam receber grande atenção.

Outros filmes com Elizabeth Moss no Cinéfilo Preguiçoso: Nós (Jordan Peele, 2019); Her Smell (Alex Ross Perry, 2018); O Quadrado (Ruben Östlund, 2017); Queen of Earth (Alex Ross Perry, 2015); Listen Up Philip (Alex Ross Perry, 2014).