Há algum tempo que o Cinéfilo Preguiçoso queria ver Estranha Sedução/The Comfort of Strangers, de Paul Schrader (1990, disponível em DVD). É um filme com várias características que, logo à partida, suscitam curiosidade: passa-se em Veneza; é realizado por Paul Schrader; adapta um romance de Ian McEwan (1981); e tem não só argumento de Harold Pinter, mas também banda sonora de Angelo Badalamenti, além de um elenco com Christopher Walken, Helen Mirren, Natasha Richardson e Rupert Everett. O resultado da combinação de todas estas componentes é, no mínimo, invulgar. O argumento chegou a Schrader já pronto, como projecto em busca de um realizador. Em entrevistas, Schrader faz questão de salientar que o filme conjuga as sensibilidades de três autores. Na obra de McEwan, salienta o desconforto que as imagens sem regras do inconsciente podem suscitar. Em relação às personagens de Pinter, faz notar que usam a linguagem para disfarçar as emoções, falando de tudo menos do que as preocupa e dizendo coisas que nada têm que ver com o que querem dizer. Sobre o seu próprio trabalho, alega que se limitou a criar uma superfície bela e irresistível que, à semelhança da superfície amável da linguagem, disfarça realidades mais perigosas. Estranha Sedução gira em torno de um casal inglês que, no limiar da desintegração em face dos dilemas típicos dos casais, decide repetir uma viagem a Veneza, cidade que tinha visitado apenas três anos antes. São duas personagens que, apesar de raramente discutirem, reagem com descontentamento silencioso e quase indiferente à acumulação de pequenas desfeitas e faltas de atenção mútuas. Em contraste com a dimensão banal ou comezinha desta relação, os percursos que as personagens traçam em Veneza vão, contudo, adquirindo cada vez mais estranheza. Claramente com o objectivo de evitarem qualquer confusão entre Estranha Sedução e Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973), filmes com evidentes pontos em comum, Schrader e Dante Spinotti, o director de fotografia, optaram por uma paleta com tons ocres e vermelho-tijolo, sob um céu bem azul, quase turístico, enquanto o filme de Roeg privilegia tons invernais mais frios, castanhos e brancos. Veneza, no entanto, continua retorcida sobre si mesma, com passagens por explorar, e cravejada de edifícios antigos, no interior dos quais nunca se sabe o que se vai encontrar. Após um encontro supostamente fortuito com Robert/Christopher Walken, uma personagem sempre vestida de branco, como um anjo da morte, que parece existir para contar sempre a mesma história, tudo muda para aquele casal que até na beleza parecia convencional. As personagens perdem-se em Veneza, a ponto de terem de dormir ao ar livre, esfomeadas, por não conseguirem encontrar o hotel. Não se percebe por que razão não resistem mais a quem suspeitam que pode destruí-los, mas, obviamente, o toque mais marcante de Schrader neste filme é traduzir em imagens venezianas a pulsão de morte que até dentro das personagens mais belas e banais é possível encontrar. Em Estranha Sedução as personagens comportam-se mais como autómatos que cumprem um programa prévio do que como agentes capazes de determinarem os acontecimentos, e erram ao sabor dos impulsos e dos desejos inconscientes. É difícil decifrar intenções ou significados num filme que resultou do trabalho sucessivo de personalidades artísticas tão fortes – e ainda bem. Estranha Sedução vale pela opacidade e pela maneira como deixa o tédio e a arbitrariedade precipitarem os acontecimentos, rumo a um final inevitavelmente funesto.
Outros filmes de Paul Schrader no Cinéfilo Preguiçoso: No Coração da Escuridão (2017), The Card Counter (2021); Master Gardener (2022).
Outros filmes em Veneza: Summertime (David Lean, 1955); Eva (Joseph Losey, 1962); Giro Turistico senza Guida (Susan Sontag, 1983); Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973).